UM PARAÍSO MORTÍFERO
Desde há meia dúzia de anos, nos países desenvolvidos do Ocidente, apareceu uma nova geração de escritores que, de certo modo, reflecte algo inevitável: assumir, sem nenhum tipo de escamoteação, que o seu imaginário narrativo (e a sua visão do mundo, assim como, por consequência, a sua pose social) está mais impregnado de referências aos códigos da música rock, do universo audiovisual (em particular dos “video-clips”) e até dos jogos informáticos do que aos códigos oriundos da história literária. A reacção do meio editorial e literário a esta nova geração foi, de início, por todo o lado, reticente: enquanto estes autores atingiam inegáveis sucessos de vendas e alguma popularidade, em particular entre os leitores mais novos, o “establishment” literário encarava-os, salvo algumas excepções, com algum desdém, apontando-os como “trânsfugas” de outros mundos e “ignorantes” dos valores (e dos “protocolos”) imprescindíveis ao meio em que se pretendiam integrar. E minimizava aquilo que, mal se abrem os livros dos seus autores mais interessantes, se revela inquestionável: é que as suas obras testemunham, de uma forma inovadora, sobre o modo de viver das gerações que chegaram agora à vida adulta e sobre a forma (bem desesperada, note-se) como elas a perspectivam; que aprofundam alguns meios técnicos narrativos (a frase e o capítulo curto, assim como a amplitude e a elasticidade do sistema de elipses) e que, por último, entendem a estrutura narrativa como uma arquitectura metafórica complexa, capaz de transmitir uma significação transcendente ao universo perdido e precário das suas personagens.
Em Portugal, também houve, sem sombra de dúvida, alguma resistência à presença editorial destes autores. De facto, poucos escritores existem no nosso país, pelo menos com estatuto de alguma visibilidade, que se possam considerar com características similares a estes narradores estrangeiros; por outro lado, a sua introdução, através de traduções, no nosso mercado editorial, só se começou a fazer, de forma significativa, há dois anos a esta parte; e, nalguns casos, o que é um total disparate, confundidos com autores de “literatura para jovens”...
A edição do primeiro romance de Alex Garland, A Praia, parece, no entanto, ter contribuído decisivamente para a consolidação destes autores no nosso meio editorial, dado o seu aparente sucesso. Note-se que este sucesso está em perfeita consonância com o que este autor, que ainda não tem trinta anos, obteve no meio editorial anglo-saxónico com os dois romances que já publicou. Uma das facetas mais determinantes da personalidade de Alex Garland relaciona-se com o facto de ser, desde os dezassete anos, um viajante quase compulsivo, deambulando por largas temporadas pela Índia e pelo Sudoeste asiático.
É esta experiência de viajante que serve de matéria a A Praia. Como é sabido, existe um grande número de jovens que, como o narrador/personagem principal deste romance, percorre os trilhos mais exóticos, aparecendo nas regiões mais inóspitas. O que é que procuram estes novos nómadas, ao vaguearem por essas regiões, quase sempre em condições bem árduas, sofrendo carências de toda a ordem e correndo muitas vezes inegáveis perigos? Uma obsessiva necessidade de abandonar as paisagens do quotidiano comum (e devia-se, antes do mais, entender esta necessidade como uma forma radical, até existencial, de rejeitar a sociedade contemporânea e os seus modelos de desenvolvimento) e diluir-se numa paisagem onde se transformam, na tentativa de conseguir a mais perfeita consonância com a Natureza, em mais um simples ser vivo. É esta necessidade que os leva cada vez mais longe, até aos lugares onde os sinais da civilização (o “cancro”, a “sida”, na classificação de uma das personagens de A Praia) sejam os mais ténues possíveis.
O romance de Alex Garland narra a tentativa desesperada de um conjunto de pessoas, oriundas de diversos países, de constituir uma comunidade clandestina (“o Éden”), quase de todo isolada da civilização (“o Mundo”), numa ilha perdida dentro de uma reserva natural (onde é proibida a presença de turistas) da Tailândia e rodeada por perigosas (porque ferozmente guardadas) plantações de droga. E desesperada, porque os seus membros sabem que o estreito canal que os liga ao “Mundo”, mais dia, menos dia, se alargará para deixar passar uma verdadeira torrente de gente (com a sua panóplia de necessidades criadas pela civilização) que destruirá o seu sonho, deixando-os sem nenhum sentido para viver.
No fundo, este desejo de constituir uma comunidade paradísica integra-se na ambição mais geral de procurar “refazer” a realidade. E, neste sentido, o modo como Alex Garland “organiza” a “consciência” e, consequentemente, o comportamento do narrador (um jovem inglês que descobre, através de um vizinho suicida de uma pensão miserável de Banguecoque, a existência da referida comunidade) é um dos elementos mais aliciantes de A Praia. De facto, para a personagem principal, Richard, a realidade é uma entidade compósita (referenciada e matizada por canções, filmes, jogos de computador e pela própria literatura), onde o elemento virtual tem uma dimensão tão concreta como a realidade exterior. Fascinado pela Guerra do Vietname (que só conhece através de séries e documentários televisivos e do cinema, pois era demasiado novo quando ela terminou), ele comporta-se, em todas as circunstâncias, como um militar americano que, ao mesmo tempo, fosse o “herói” de um jogo belicista de computador. A própria droga (o charro que está sempre a fumar) serve-lhe para reconstruir essa mesma realidade, fazendo com que as figuras, que povoam os seus sonhos e pesadelos, sejam interlocutores reais com quem define a forma de agir e de resolver as situações.
Esta assunção do virtual como realidade concreta está mesmo na base da concepção de A Praia. De facto, o romance não só está elaborado como se fosse um jogo de computador (o “gameboy” que as suas personagens passam o dia a jogar) em que existem diversos níveis de dificuldade que as personagens são obrigadas a superar, como estas actuam de acordo com o comportamento estereotipado das figuras que vêem no universo virtual. Neste sentido, este romance de Alex Garland traz esse elemento inovador (e, de certo modo, perturbante): a realidade que referencia já não é a realidade concreta (ou, se quiser, existencial), mas um universo de referências (imagens, personagens, situações) a que se dá uma dimensão de “real plausibilidade”. E o modo como o autor encaminha o leitor, deixando-o na constante incomodidade de não saber se as situações narradas têm alguma plausibilidade ou meras construções virtuais e aliciando-o a continuar através de um ritmo narrativo particularmente intenso, revela inegáveis méritos literários.
Porém, o autor sabe que esta ambição de superar uma realidade concreta pela realidade virtual (no essencial, é também essa uma das motivações da produção romanesca) irá, num determinado momento, soçobrar, desfazendo-se todos os equívocos: é impossível morrer como se fosse uma personagem de jogo informático. A morte aparece, no final, como a entidade sugadora de todas as realidades, onde todos os Édens construídos deixam de ter sentido, como uma “transrealidade” opaca, mineral, “abaixo” de todos os códigos, que consegue vingar todas as tentativas para lhe querer fugir.
Publicado no Público em 1999.
(Foto do Autor de Tom Miller)
(Foto do Autor de Tom Miller)
Título: A Praia
Autor: Alex Garland
Tradutor: Mário Dias Correia
Editor: Quetzal Editores
509 págs., € 7,07
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