A ÁGUA DA INFÂNCIA
Um dos elementos que mais tem contribuído para o vigor e dinamismo da literatura de expressão inglesa no corrente século tem sido, sem sombra de dúvida, a forma como consegue integrar a produção literária de autores oriundos de países pertencentes à antiga Commonwealth: basta consultar as “short-lists” dos mais importantes prémios literários ingleses para constatar este facto. É certo que esta situação é ainda uma sequela do colossal império que foi o Reino Unido e de continuar, como grande potência económica, a atrair e a formar a “inteligentsia” dos Estados que surgiram a partir da II Guerra Mundial. É neste contexto que se deve compreender a opção de muitos autores originários desses países em residir em Inglaterra e de adquirir a nacionalidade britânica. Mas mesmo em relação aos autores que resolveram permanecer no país de origem, a edição inglesa continua a ser o principal veículo da sua afirmação literária, dado o papel hegemónico que mantem, directamente ou através de sucursais ou de empresas geminadas, na publicitação de obras oriundas das antigas colónias.
A esta “absorção” cultural, não escapam os autores de países, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, em que existem níveis elevados de desenvolvimento económico e cultural. Repare-se, por exemplo, no caso de Katherine Mansfield. De facto, será mais determinante, para a compreensão da obra desta notável contista, saber que nasceu na Nova Zelândia ou que pertenceu aos círculos literários de Virginia Woolf e de D.H. Lawrence? Mesmo nos dias de hoje, em que se reconhece existir, tanto na Austrália como na Nova Zelândia, uma vida literária significativa, onde proliferam prémios, revistas e instituições, a consagração dos seus autores mais importantes, como C. K. Stead, Janet Frame, Alan Duff ou Patricia Grace, continua a fazer-se através da vida cultural inglesa.
Não admira, por isso, que, seguindo as pegadas dos seus antecessores, uma recente escritora neozelandesa, Kirsty Gunn, que despontou literariamente na década de noventa, com esta novela, Chuva, que agora é apresentada aos nossos leitores, o tenha efectuado em Inglaterra, onde ainda hoje vive.
Chuva é uma novela que faz transparecer uma imagem de fragilidade, onde a trama parece estar permanentemente a liquefazer-se, a escapar-se entre os dedos de quem a lê. De facto, o peso do elemento “água” nesta curta narrativa é tão constante, está tão presente em todas as suas páginas, que a própria acção parece desenrolar-se de uma forma ondulada, ao sabor das sinuosidades das elipses, criando uma cortina líquida que, de forma intencional, “turva” o olhar do leitor. Para este resultado contribui um acentuado cuidado estilístico - que se revela na criatividade da sua adjectivação e na depuração lírica das suas breves metáforas - que incute a esta obra uma qualidade poética muito peculiar.
A novela de Kirsty Gunn centra-se no sentimento de profunda amizade, de paixão quase materna, que a narradora, uma criança no início da adolescência, tem pelo irmão de cinco anos e nos seus solitários jogos infantis, em redor do lago próximo de sua casa, com que fugiam ao “olhar” adulto, a sonhar com uma independência selvagem, liberta de qualquer constrangimento, e que eles sabem ser uma utopia inconcretizável.
O universo de Chuva estrutura-se em redor de duas ideias-força fundamentais: a primeira, é a de que existe entre o universo infantil e adolescêntico e o universo adulto um acentuado grau de incomunicabilidade, resultante de visões e interpretações do mundo diferentes e de códigos de comportamento que são ilegíveis de parte a parte; a segunda, é a de que existe, na criança, uma sensualidade difusa, quase pré-sexual, e que é na tepidez dessa “água” que não só se fermenta a sensibilidade infantil, como é através dela que a criança consegue atingir aquela consonância com a natureza que lhe transmite uma auréola de esplendor divino. Neste contexto, a descoberta da sexualidade provoca o desaparecimento desta sensualidade sem objecto, rompendo em definitivo com a referida consonância e deformando o olhar que a narradora tem sobre o seu irmão. No fundo, a descoberta da sexualidade desencadeia o real processo de morte do corpo. Daí que a sexualidade apareça nesta novela como uma culpa desejada, um vórtice que os sentidos suplicam, mas que transforma a infância num paraíso perdido.
Chuva é, sem dúvida, uma das mais belas e interessantes obras que apareceu nos últimos tempos no nosso país sobre a infância. Grande parte da sua comovente beleza advém do pudor com que afronta os sinais trágicos da vida. Neste sentido, as páginas em que narra a descoberta da sexualidade por parte da personagem principal ou aquelas em que se desfecha o clímax da acção são exemplares de contenção emotiva, de tratamento subtil de tudo o que é insustentável para a sensibilidade infantil. Pena é que a tradução, algumas vezes, se deixe ficar demasiado presa à sintaxe inglesa e que, aqui e além, revele opções semânticas que não são as mais ajustadas.
Publicado no Público em 1999.
Título: Chuva
Autor: Kirsty Gunn
Tradutor: Margarida Vale de Gato
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1999
117 págs., esg.