AS AFINIDADES IRREDUTÍVEIS
Muitas vezes, os motivos e as condições do aparecimento de um livro, sem determinarem o seu sentido e valor, são acontecimentos que se inscrevem como estigmas no “corpo” da obra e o seu conhecimento contribui inequivocamente para que ela obtenha a sua afirmação plena.
Fred Uhlman viveu cerca de quarenta anos “habitado” por esta história que a edição portuguesa apelou de O Reencontro. Judeu alemão, Fred Uhlman nasceu em 1901 em Estugarda. Já advogado rural, recebeu em 1933 um telefonema de um amigo nazi, aconselhando-o a fugir de imediato da Alemanha. Sem voltar a ver os pais (que vão morrer em Auschwitz), Uhlman, depois de deambular um pouco pela Europa perseguido por todo o tipo de dificuldades, fixa-se em Inglaterra. Aí, nauseado com tudo o que se relaciona com a cultura alemã, resolve abandonar todas as suas anteriores actividades e, com as dificuldades de um homem já formado, aprender a língua inglesa. Enquanto a não domina, começa a trabalhar como desenhador e pintor. Só em 1960 se considerou em condições para redigir esta obra, elaborando, como refere Arthur Koestler na sua introdução, uma “pequena obra-prima” sobre o “tempo em que se derretiam cadáveres para fazer o sabão que mantinha limpa a raça dominante”.
O Reencontro narra a relação de amizade, nos anos de 1932/33, entre dois liceais, a do judeu Hans Schwarz por um descendente de uma das mais importantes famílias aristocráticas alemãs, Konrad vou Hohenfels. Mas esta relação, estabelecida com a capacidade de admiração e fascínio da adolescência, vai ser marcada pela diferença social e pelos preconceitos rácicos, pela ascensão do nazismo, e, por fim, brutalmente interrompida pelo exílio a que Hans Schwarz é impelido. E neste aspecto, na sua extrema simplicidade narrativa, O Reencontro é modelar na forma como encadeia a interferência da História na história privada e como revela que elas são, no fundo, as duas faces de uma mesma moeda.
Mas a singeleza dos meios utilizados na narração desta relação entre dois jovens, feita de uma imediata e intensa empatia e da cumplicidade resultante da descoberta em comum das emoções, e, além disso, de como ela consegue perdurar, após a adversidade imposta pelo nazismo, muito anos depois, transforma O Reencontro numa “história exemplar”, com uma dimensão quase mítica, da catástrofe política e social que foi aquele regime, mas, em particular, desse sentimento dolorosamente frágil que é a amizade.
Por outro lado, tanto a enorme paixão pela terra alemã, pela “Heimat”, revelada por Hans Schwarz (note-se que toda a novela é narrada por esta personagem como se fizesse, largos anos depois, uma rememoração nostálgica desta relação e das deambulações que ela propiciou pela Floresta Negra, pelas margens do lago Constança ou pelos arredores de Estrasburgo), como a sua posição de se assumir antes do mais como suábio, depois alemão e só por fim como judeu, ou ainda, mais tarde, a sua repugnância em contactar com qualquer alemão, tal é a ferida que sente por estes terem construído Auschwitz, demonstra que aquela personagem tem fortes traços analógicos com o próprio Fred Uhlman, ao ponto de transformar O Reencontro numa espécie de autobiografia idealizada.
Por fim, saliente-se alguns efeitos de encenação dramática particularmente eficazes e, por conseguinte, inesquecíveis, desta obra: é o caso do modo como é descrita a entrada na sala de aula de Konrad von Hohenfels, quando Hans Schwarz o vê pela primeira vez, ou então, quando esta personagem descobre, muitos anos depois da separação, o destino do seu amigo, situação esta que transfigura de forma trágica toda a relação narrada e todo o contexto social e político que a envolve.
Publicado no Expresso em 1989.
Título: O Reencontro
Autor: Fred Uhlman
Tradutor: Paula Vitória
Editor: Presença
Ano: 1989
90 págs. € 8,31
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