sábado, 26 de janeiro de 2013

GERT HOFMANN




A INFELICIDADE DOS FILHOS



Quando hoje se escreve sobre Gert Hofmann, o autor de A Felicidade, faz-se, por costume e de imediato, referência à sua “malograda carreira”. É natural que, com esta expressão, se pretenda lamentar a sua morte recente e relativamente precoce - o autor faleceu em 1993 com 61 anos -, mas creio que também existe nela um ténue sinal crítico e de avaliação da sua produção literária. Iniciando-a já tarde nos anos setenta, Gert Hofmann elaborou uma prolífera obra narrativa (e dramática), experimentando, de romance para romance, técnicas e tonalidades estilísticas, numa tentativa constante de conjugá-las aos diversos temas tratados, de forma a atingir uma eficaz carga expressiva. O resultado foi uma produção muito diversificada, bastante traduzida, onde a crítica realça alguns títulos, como Der Bündensturz, Veilchenfeld e O Homem do Animatógrafo, este último também já editado pelas Ed. Asa, mas também onde esperou sempre, e com legitimidade, o romance bem “marcante” que nunca chegou a aparecer.

Dentro da sua diversidade, pode-se, contudo, observar algumas constantes na criação romanesca de Gert Hofmann, e uma delas, que também aparece em A Felicidade, está relacionada com o aproveitamento do “grotesco” - no prolongamento de uma tradição literária bem germânica - como forma de fazer sobressair a dimensão absurda de certos comportamentos modelados pela sociedade.

A Felicidade narra o dia de separação de um casal, visto pelo olhar de um dos filhos, uma criança de dez anos, que abandonará com o pai a casa familiar. No essencial, procura-se fazer sobressair como, aos olhos de uma criança, o comportamento adulto é, muitas vezes, estranho e incoerente e lhe provoca um sofrimento redobrado, visto que não só atinge os seus sentimentos e afectos, como, ainda por cima, é ocasionado por motivos que ultrapassam a sua capacidade de entender, dado que não lhe domina os princípios. No caso de uma separação conjugal, este sofrimento assume a dimensão de uma catástrofe, pois que é todo um universo de referências constituintes que de súbito desmorona: não só se esgarça o circuito afectivo no seio familiar, mas também, com o abandono de um determinado espaço físico, de todas as relações que a criança foi cimentando de forma ainda frágil, deixando-a perigosamente a pairar numa névoa onde todos os contornos se diluem, incluindo os da sua própria personalidade.

Com uma maestria técnica admirável, e já muito reconhecida noutros romances, Gert Hofmann respeita, com todo o rigor, o olhar do narrador, revelando como lhe aparecem informes e destituídos de sentido os comportamentos adultos e esquivando-se, ao mesmo tempo, a fáceis tentações que um tema como este permitiria. Repare-se, por exemplo, nas figuras parentais que se revelam de uma extrema mediocridade e de um ridículo atroz (um pai, um pretenso escritor, abissalmente indolente, que nunca escreveu uma linha, mas que justifica com esta “actividade” o seu constante estado de sonolento devaneio, e uma mãe, frustrada e mesquinha, cuja carência de afecto a bloqueia de prestar qualquer atenção aos filhos, perdida num primário coquetismo de quem vive em pânico a idade que se aproxima); contudo, isto são juízos que o leitor deduz, porque o olhar da criança, espelhado no romance, é o de uma enorme complacência pelos pais, assumindo-os com a “naturalidade”, tingida de alguma ironia, de quem não tem outras referências. Por outro lado, o autor controla uma fácil sentimentalidade - que não é comum à infância -, mostrando, pelo contrário, como a criança reage numa espécie de torpor às “ordens” e aos comportamentos contraditórios e, aos seus olhos, gratuitos dos adultos.

Neste contexto, tem um significado decisivo o título do romance. As crianças percebem que a separação dos seus pais é resultado da sua busca de “felicidade” (em particular da mãe), termo que para elas não tem um sentido específico e que aparece como uma espécie de entidade mítica que apenas impele os seus pais a comportamentos de mutismo e de agressão entre si. E isto ainda se lhes torna mais notório quando constatam que a figura masculina que vem “usurpar” o lugar do pai, assumindo, perante o seu olhar, uma convivência no espaço da casa e no corpo da mãe que é a encarnação do final de uma época da sua vida, nenhuma mudança virá trazer à pobreza de quotidiano em que sempre viveram. A busca de “felicidade” dos pais não passa, por isso, de um aberrante anjo infernal que desceu da consciência paterna para flagelar o universo dos filhos.

Inúmeras vezes parece que a narrativa de A Felicidade se constrói como se pretendesse ocultar, sob um véu de palavras, um sofrimento impossível de dizer, um núcleo de mágoa repleto de silêncio. E que, por conseguinte, aquilo que é verbalizado só serve para testar a atenção e a subtileza do leitor, desviando-o do que é, na verdade, dramático na acção. Por isso, como se a ponta de um iceberg conseguisse por uma única vez subir à tona de água, há que realçar, na estrutura do romance, a despedida do narrador do seu colega dilecto: poucas vezes se tem visto, na mais recente literatura, uma tão jubilante e intensa cena amorosa - no sentido mais genuíno desta expressão - pela contenção e singeleza do que é dito, pelos sentimentos contraditórios de paixão e ciúme, de desejo e inibição.

Mas são as qualidades reveladas em tantas passagens de A Felicidade que nos fazem lamentar que Gert Hofmann não tenha sabido dominar a sua mão, eliminando inúmeras páginas que nada acrescentam ao romance, nem à caracterização da situação, nem à definição das personagens. De facto, o romance “arrasta-se” inutilmente e provoca algumas vezes no leitor um tédio que poderá impeli-lo a abandonar a meio a obra e a perder algumas páginas que são de facto verdadeiras preciosidades.

Publicado no Público em 1997.


(Foto do Autor de Ursula Hasenkopf).

Título: A Felicidade
Autor: Gert Hofmann
Tradução: Maria Augusta Júdice
Editor: Edições Asa
Ano: 1997
278 págs., esg.







quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

PETER SCHNEIDER





HERANÇAS PATERNAS


Uma das facetas mais interessantes da literatura alemã do pós-guerra é que ela produziu um já impressionante conjunto de obras romanescas e ensaísticas relacionadas com o tema da culpa, com a caracterização deste sentimento, a sua pertinência existencial e social, a sua motivação psicológica e política, etc., ao ponto de ter sido, provavelmente, um dos mais importantes contributos, no seu todo, para uma reformulação, no nosso tempo, dos valores morais.

É sabido que este tema tem origem na necessidade, sentida em particular pelos escritores do Grupo 47, em responsabilizar (e, de certo modo, culpabilizar), individual e colectivamente, o povo alemão pelos crimes de guerra e as tentativas de genocídio perpetrados pelo regime nazi, como única forma de extirpar as razões culturais que lhe deram origem e, assim, eliminar qualquer eventual “renazificação”.

Papá, a novela de Peter Schneider agora traduzida, continua esta mesma problemática, formulada agora por quem, em termos geracionais, não esteve envolvido com os acontecimentos provocados pelo referido regime. A sua publicação originou uma acesa polémica na Alemanha e deu ainda mais realce ao nome do autor que, vindo da militância da extrema-esquerda, iniciou a edição da sua obra romanesca nos finais da década de setenta e de imediato granjeou o prestígio de ser considerado um dos escritores mais importantes da geração posterior à de Peter Handke.

A trama desta novela baseia-se narração da visita de um jovem advogado ao seu pai que, sendo um torcionário nazi dos campos de concentração escondido no Brasil, mal conheceu e só adulto soube que estava vivo. Tendo sofrido, durante a infância e a adolescência, o estigma do seu patronímico, ao ponto de sentir que a sua relação com os outros foi radicalmente alterada por esta permanente sombra, e de todo convicto da culpabilidade do seu pai, ele visita-o, não só para conhecer o tipo de homem que o marcou de forma tão trágica, mas para o obrigar a assumir, perante a actual sociedade, a responsabilidade dos actos que cometeu.

Mas, perante o pai, uma questão de fundo lhe surge de forma brutal: como conseguimos nós próprios assumir, ao nível do privado, um crime que socialmente consideramos hediondo? Ou por outras palavras: como somos capazes de acusar o pai?

E não se julgue que a perturbação que motiva a pergunta seja resultante de qualquer intensidade afectiva. Nesse aspecto, Papá coloca a questão na dimensão correcta: a personagem principal mal conheceu o pai “antes”. A perturbação que deu origem àquela pergunta é motivada pela “proximidade” familiar, pela natural tendência em sobrepôr a história privada à História social, levando à diluição dos juízos que, no registo desta, seriam objectivos e concludentes.

É certo que são duas as acusações que a personagem principal faz ao pai: uma, de natureza pessoal, resultante da maldição que a acção do pai lançou sobre o seu nome, e outra, de natureza social, resultante da sua assinalada intervenção num repugnante genocídio. Mas qual destas duas acusações o obstina em condenar o pai?

O problema coloca-se-lhe de um modo objectivo quando a personagem principal, tentando resolver um caso de roubo de que fora vítima, percebe que a polícia decide, para o pacificar, arranjar um bode expiatório numa jovem que, ainda por cima, o tinha chamado atenção na rua: não só o “seu” culpado deixara de ser incorpóreo (tal como o seu pai), como a intervenção social deformara o sentido da sua acusação (tal como iria acontecer provavelmente com aquele). É enquanto busca, de modo desesperado, anular o resultado que a sua obstinação em acusar tinha provocado e perante a degradação social que a cidade de Belém (cenário de ocultação do pai-carrasco) patenteia por todo o lado, que à personagem principal se coloca a questão final: até que ponto temos legitimidade em exigir que alguém assuma culpas perante “esta” sociedade?

Papá fica por aqui nas questões que coloca de forma explícita. Mas deixa a pairar outras vertiginosamente mais perigosas. O leitor pressente-as, busca-as, mas a obra de Peter Schneider, ao confinar-se às dificuldades de integração no domínio privado de princípios gerais, deixa-lhe apenas uma nebulosa de interrogações sem um sentido previsível. De facto, esta novela torna-se polémica, não tanto pela problemática que coloca, mas pela que indicia. Esperemos, por isso, que se clarifiquem nas próximas obras do autor os percursos que aqui se abrem…



Publicado no Expresso em 1988.



Título: Papá
Autor: Peter Schneider
Tradutor: Artur Lopes Cardoso
Editor: Edições 70
Ano: 1988
86 págs., esg.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

ERIK FOSNES HANSEN



A VIDA COMO MELODIA



Os críticos estrangeiros mais atentos ao desenvolvimento das diversas literaturas nacionais já tinham constatado um facto que hoje, perante a consagração internacional de um número significativo de obras e de autores, parece ser indesmentível: as literaturas escandinavas, desde, pelo menos, os princípios da década de oitenta, revelam ser uma das mais estimulantes literaturas periféricas da actualidade. Tal facto não tem uma explicação simples. Porém, não há dúvida que existe nestas literaturas um conjunto de autores que expande uma auréola de “intensidade” sobre tudo o que no seio delas se produz e provoca nos editores literários de todo o mundo uma excepcional atenção ao que lá aparece. Decerto - e sem avaliar agora a sua qualidade literária - não são alheios a esta situação os estrondosos sucessos internacionais de autores como Jostein Gaarder e Peter Høeg. E, paralelamente, o aparecimento de um romance como este Concerto No Fim Da Viagem de Erik Fosnes Hansen, um escritor norueguês, com pouco mais de trinta anos, que arranca com uma obra de tal qualidade que fundamenta, de imediato, que se lhe profetize um significativo papel na literatura norueguesa e mesmo mundial.

Um dos aspectos intrigantes neste romance é o de nada ter de especificamente norueguês. Tanto podia ser escrito por um norueguês como por um autor de qualquer outra literatura importante europeia ou americana - e, note-se, só um juízo demasiado ligeiro poderá entender que isto está em contradição com o que acima ficou dito. O que este facto demonstra é que alguma coisa está mudar, rápida e profundamente, na literatura, resultante da circulação da informação em circuitos muito conexos e com uma “densidade” informativa que permitem um fácil e natural “despatriamento” cultural.

A trama de Concerto No Fim da Viagem é muito simples: o autor resolve ir buscar o tema do naufrágio do “Titanic” (e seria interessante que o leitor português tivesse a possibilidade de confrontar esta obra com Every Man for Himself de Beryl Bainbridge, uma importante escritora inglesa que ganhou o prémio Whitbread de ficção de 1996 com este romance sobre o mesmo tema) e “inventar” a vida dos sete músicos que constituíam a sua orquestra, que ficaram a tocar até ao último momento e desapareceram nas águas do oceano com o navio.

Para isso, Erik Fosnes Hansen rodeou-se de uma exaustiva informação documental de que são bem exemplificativas as minuciosas descrições que enchem o romance. Porém, não se julgue que o autor aposta em escrever um romance que seja estritamente histórico ou em elaborar um testemunho romanesco sobre uma época ou um facto (a prova disto é que resolve assumidamente “inventar” sete músicos e a sua vida e não recriar a vida dos músicos que de facto morreram no naufrágio do “Titanic”). Por outro lado, um tema como este poderia levar a um simbolismo fácil que associasse a viagem e o naufrágio do navio a uma certa concepção da vida.

No entanto, Erik Fosnes Hansen foge tanto a uma circunscrita concepção documental como a uma primária pretensão simbólica. O seu objectivo é o mais simples e, ao mesmo o tempo, o mais complexo que existe na literatura: contar “vidas”, utilizando aqui o estratagema do naufrágio do “Titanic” para legitimar a presença de vidas tão diversas no mesmo romance. Neste sentido, pode dizer-se que o que orienta o autor é uma concepção cósmica, polifónica mesmo, da vida, em que cada existência não passa de um singelo tema melódico ou de uma simples nota musical que lhe determina o “tom” (daí o sentido que tem iniciar cada capítulo com uma pauta com uma nota ou um breve tema musical).

Um dos curiosos efeitos dramáticos deste romance é resultante de o leitor saber à partida qual é o trágico fim destas vidas. Este dado dá uma redobrada significação a cada facto narrado: parece que todo o sofrimento ou toda a alegria é, ao mesmo tempo, “único” e “inútil” e que a existência não passa de um caos que só serve para deixar como memória uma muito diáfana “melodia”.

Por outro lado, parece que Erik Fosnes Hansen encara qualquer existência como que ferida por uma “fissura” primordial por onde se escoam os dias até ao seu fim (assim, a do chefe de orquestra, Jason Coward, - sem sombra de dúvidas, a mais importante e conseguida do romance - é a morte brutal dos pais; a de Spot Hauptmann, o pianista, é a de ser um menino prodígio encarado como uma atracção de feira; a de David Bleiernstern, o segundo violino, é uma intensa paixão traída; a de Petronius Witt, é o seu nome e a história familiar a ele associada; etc.). Neste sentido, pode dizer-se que o autor revela uma visão pessimista e determinista da vida, a que a felicidade dá fugazes momentos de cor, mas cujo desaparecimento ainda mais acentua a obscura vagabundagem dos dias.

Concerto No Fim Da Viagem demonstra que Erik Fosnes Hansen tem uma invulgar capacidade de análise e caracterização psicológica (a vida de Spot Hauptmann, por exemplo, é uma das mais perfeitas histórias de “loser” - desculpem o anglicismo - que alguma vez li) e, ao mesmo tempo, domina soberbamente um estilo de um lirismo trágico que dá a este romance uma belíssima coloração nocturna. A única coisa a críticar nesta obra é a de possuir, aqui e além, em particular nos encadeamentos narrativos entre as diversas “vidas”, um ritmo um pouco arrastado que quebra a sua unidade e desmotiva o leitor.

Por fim, devo assinalar que, mesmo não conhecendo a língua norueguesa, me parece que a transcrição para português é, em geral, boa. Só há a lamentar que o editor não acompanhe esta obra de elementos informativos que estimulem a sua aquisição no nosso mercado. Como é possível que a obra de um autor desconhecido de todo no nosso país possa obter sucesso, quando nem sequer é acompanhada por uma brevíssima nota biobibliográfica?


Publicado no Público em 1996.

(Foto do Autor de Marcel Leliënhof)



Título: Concerto No Fim Da Viagem
Autor: Erik Fosnes Hansen
Tradutor: Sissel Cardona
Editor: Editorial Presença
Ano: 1996
434 págs., esg.





terça-feira, 15 de janeiro de 2013

IAN McEWAN




AS CIDADES INABITÁVEIS


Uma das linhas temáticas mais intrigantemente constante na ficção moderna britânica é a que gira em redor do medo como efeito de um Mal que seria uma sistemática presença, surda e oculta, no quotidiano e na Natureza. Teria, como é óbvio, interesse compreender por que é que esta temática tem um relevo tão crucial nesta literatura. Mas não sendo esta a circunstância adequada, saliente-se apenas que esta linha temática tem notórias ramificações para a chamada corrente “metafísica”, que, ao longo dos tempos, esteve na origem da novela “gótica” e do “policial”, e ainda que, com desenvolvimentos diversos, é central na obra de vários autores fundamentais como, e só para referir alguns dos contemporâneos, Hardy, Conrad, Forster e Golding.

Dentro da geração que, a partir dos finais da década de setenta, tem renovado a literatura britânica - e que, diga-se de passagem, bem bafejada tem sido pela edição portuguesa -, o autor que, em particular, retomou esta temática é Ian McEwan. Algumas das suas obras têm-se centrado, de facto, na forma como pode configurar-se o Mal - desde que haja circunstâncias favoráveis - em personagens triviais, levando-as a situações da mais radical violência. De forma genérica, pode considerar-se que é a consciência de um permanente perigo indefinível, que o comportamento das personagens criadas por lan McEwan traduz, e com o qual o leitor se identifica, que provoca este autêntico abismo negro de horror que caracteriza as suas obras.

Desenvolvendo uma epígrafe de Cesare Pavese, relativa a sensação de instabilidade e despojamento que a viagem pode originar, Ian McEwan resolve, em Estranha Sedução, o seu segundo romance, inserir em Veneza (note-se que a cidade nunca é nomeada, mas é inequivocamente descrita) dois amantes, de origem britânica, passando as suas férias. As dificuldades em se orientarem no labirinto de canais, ruas e vielas da cidade, a falta de domínio da língua e da cultura dos seus habitantes, a inexistência de qualquer projecto que os ocupe, levam-nos a uma situação de isolamento e de precaridade que, além de os empurrar para os braços um do outro, deixa-os expostos ao manejar da vontade e do desejo daqueles que os rodeiam.

O cenário tem, portanto, um papel determinante na criação de um clima propiciatório para o desenrolar de una situação trágica que, de imediato, o leitor prevê, sem, no entanto, perceber qual a forma com que irá desenlaçar-se. Veneza aparece como uma cidade “perversa” (a recordar Morte em Veneza de Thomas Mann, mas, em particular, o filme homónimo de Luchino Visconti), na medida em que a sua pregnação entre mar e terra, a sua dimensão de fantasmagórico museu monumental, a fluidez das gentes desenraizadas que por ela circulam e a rapacidade dos seus residentes a transformam num espaço sedutor, mas também perigoso e, por isso mesmo, impossível, de “habitar”. Neste sentido, a cidade prenuncia e propicia o aparecimento de formas de desejo “perverso” e, assim, também inabitáveis: os que se consomem na morte.

É uma dessas formas de desejo, que só a dor e o sangue conseguem aplacar, que pulsa no segundo casal de Estranha Sedução, residente em Veneza, e com o qual, um pouco por enfastio e cansaço, o par de turistas se vê forçado a conviver. Aquele casal sabe que a lancinante “ferida”, resultante da impossível complementaridade da sua sexualidade, só cicatrizará, se eles escolherem uma vítima para onde canalizem o seu desejo assassino. Por conseguinte, Estranha Sedução pode ser encarado também como a narrativa ambígua de uma alucinante redenção; ou, de forma mais simples, como a crónica de um desejo insustentável de violação e fuga. No final, todas as personagens deste perturbante romance são obrigadas, de qualquer modo, a abandonar a cidade: “viajar” descuidadamente pelo desejo dos outros poderá revelar-se tão mortífero como percorrer uma cidade que não se domina e que, assim, se fecha, espoliando os intrusos.

Refira-se ainda que o enredo é muito bem favorecido pelos já característicos meios estilísticos de Ian McEwan: secura, objectividade, parco em adjectivos e metáforas, e, no entanto, subtil no desvendamento do fluir dos estados psicológicos e inteiramente ajustado ao desenrolar da acção

Publicado no Público em 1991.


Título: Estranha Sedução
Autor: Ian McEwan
Tradutor: Ana Falcão Bastos
Editor: Gradiva
Ano: 1991
126 págs., € 10,10



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

HELLA S. HAASSE




A PERSONAGEM CRIADORA



Durante as décadas de setenta e oitenta, muito poucos foram os escritores holandeses que adquiriram uma segura irradiação nos circuitos internacionais da edição literária. Um deles é Hella S. Haasse, uma autora com uma longa carreira que, entre muitas outras expressões literárias, tem cultivado o romance histórico, um género que, como é sabido, possui públicos garantidos um pouco por toda a parte e, por isso mesmo, torna mais fácil a implantação de certos autores nesses circuitos. De facto, esta escritora conseguiu o reconhecimento internacional com alguns romances onde associa erudição a um criativo tratamento narrativo ao abordar temáticas em que a contextualização histórica contribui para evidenciar as componentes da sua problematização.

Bem exemplar de tudo isto é Uma Ligação Perigosa - Cartas de Valmont, o primeiro romance de Hella S. Haasse a ser editado no nosso país. Para um leitor de cultura média, este título estabelece logo uma conexão com As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos, talvez o romance epistolar mais conhecido do séc. XVIII, e um dos textos fundamentais da literatura libertina. Partindo de uma referência de Laclos no final deste romance, onde assinala que a sua personagem principal, a marquesa de Merteuil, depois de ter passado o seu período de esplendor num constante jogo de seduções e traições, se refugiou, perseguida pelos credores, desfigurada pela varíola e cega de um olho, na Holanda, Hella S. Haasse resolve imaginá-la vivendo numa pequena casa de campo situada num local que, em neerlandês, quer dizer “Valmont”, o nome do seu amante e cúmplice nos jogos libertinos. E, a partir daí, conceber uma impossível troca de correspondência entre si e a personagem de Laclos, de forma a confrontar a sua visão do mundo e, em particular, da mulher com as reflexões sobre o seu destino com que, eventualmente, a marquesa de Merteuil, no meio da mais atroz solidão, ocupou os seus últimos dias.

A própria autora refere que um dos principais interesses desta correspondência poderá estar em reflectir experiências de vida de duas mulheres com características físicas e psicológicas diametralmente distintas. Além disso, Hella S. Haasse confessa que com esta correspondência pretendeu exorcizar um fantasma, isto é, uma determinada concepção da mulher e do seu lugar no mundo que lhe são estranhas, mas que, por isso mesmo, a fascinam.

A primeira constatação que se pode fazer sobre a construção de Uma Ligação Perigosa é que exige a interacção de dois níveis de leitura que se encaminham de um modo gradual para uma total confluência.

No primeiro nível, a obra parece centrar-se numa reflexão sobre dois estatutos da feminilidade. O primeiro, defendido pelas epístolas da marquesa de Merteuil, genuinamente iluminista, parte do princípio de que não há nenhuma relação social - e, muito menos, de cumplicidade de desejos - que não se baseie numa relação de poder. Por conseguinte, a afirmação da liberdade na mulher, no contexto social e político do séc. XVIII, parte do primado de uma soberania a conquistar (contra Deus, contra o Outro, contra a Natureza - isto é, o condicionalismo em si das emoções e dos sentimentos): o prazer (a “felicidade”) só pode resultar da vertiginosa paixão de manipular o outro, pelo exercício da razão, até ele se enredar de forma submissa na satisfação do desejo de quem o manipula. O segundo, protagonizado pelas cartas da autora, originário do quadro ideológico do romantismo, defende que qualquer relação social - e, antes de mais, a afectiva – “deve” assentar numa ética da igualdade que reconheça o outro como pessoa. A relação amorosa, neste contexto, não é a finalização de uma estratégia, de uma “representação”, mas a consequência “natural” (isto é, um efeito da sensibilidade) da necessidade individual de complementarização para o aparecimento do Ser: a felicidade está na condução do desejo num contexto sentimental, amoroso, que permita a construção, sempre frágil de um Uno utópico. Hella S. Haasse, mesmo tomando claramente partido neste conflito dialéctico, percebe - e este é um dos elementos fascinantes deste romance - que ele está hoje longe da sua plena superação e que, pelo contrário, cada vez mais está na ordem do dia numa sociedade como a nossa, onde o efeito sedutor da imagem-corpo se infiltra, como valor “aristocrático”, no ideário do voluntarismo igualitarista. Talvez seja esta a razão sociológica por que a autora sente a “imagem interior” da marquesa de Merteuil a cercar as suas convicções e daí que sinta necessidade de a exorcizar.

Mas, para que as teses de Hella S. Haasse sejam, em coerência, defendidas, há um problema que se lhe coloca - e entramos no segundo nível de leitura - relacionado com a própria construção do romance: como será possível eliminar o papel demiúrgico e manipulador do autor? Choderlos de Laclos resolveu-o de uma forma clássica em As Ligações Perigosas: ao construir o romance através do encadeamento de cartas trocadas, “dissolveu” o efeito mediador e soberano do narrador, dando ao leitor a ilusão de que as personagens são “reais” e conseguindo escamotear assim, quase por completo, o próprio estatuto do autor. Hella S. Haasse opta por uma estratégia narrativa oposta e com efeitos, na aparência, contraditórios: primeiro, enuncia de forma explícita que o estatuto da marquesa de Merteuil é o de personagem de ficção; segundo, ao colocar-se ela própria, Hella S. Haasse, como personagem, emissora e receptora de cartas, provoca a ilusão de autonomizar a sua interlocutora, transmitindo a ideia de que ela pode, de modo independente, pensar e até decidir o seu destino. E, de facto, se, por um lado, a escritora Hella S. Haasse sente necessidade de delinear a configuração física e até o contexto espacial em que a marquesa de Merteuil deambula (coisa que Choderlos de Laclos pouco ou nada fez no seu romance), por outro, dá-lhe o direito de ser ela a definir a interlocutora que necessita (isto é, a própria Hella S. Haasse), de ser ela a denunciar a presença fantasmagórica e manipuladora da autora, de “viciar” o próprio debate, escamoteando informações, e, por fim, de tentar construir o seu destino, fugindo às intenções de quem a criou. O objectivo desta estratégia narrativa torna-se claro quando, na estrutura do romance, a marquesa de Merteuil se transmuta em Merlim a corresponder-se com a Fada Morgana e que se pode resumir na seguinte questão: é o autor que cria a personagem ou é esta, como arquétipo em constante mutação, que "cria” o autor, ao infiltrar-se nas suas inquietações?

Uma Ligação Perigosa levará, decerto, o leitor a interrogar-se, algumas vezes, se não estará em presença de um ensaio que se oculta sob as roupagens de um romance e, por outras, a “irritar-se”, aqui e ali, com algumas desnecessárias derivações eruditas de Hella S. Haasse. No entanto, se conseguir alhear-se destas questões de tipificação literária e se deixar envolver no percurso sinuoso dos argumentos e contra-argumentos destas epístolas, verá que considerará bem estimulantes e actuais algumas das reflexões que esta obra espelha.

Publicado no Público em 1997.


Título: Uma Ligação Perigosa - Cartas de Valmont
Autor: Hella S. Haasse
Tradução (do neerlandês): Ana Pinto de Almeida e Arie Pos
Editor: Editorial Teorema
Ano: 1997
203 págs., € 11,88