A INFELICIDADE DOS FILHOS
Quando hoje se escreve sobre Gert Hofmann, o autor de A Felicidade, faz-se, por costume e de imediato, referência à sua “malograda carreira”. É natural que, com esta expressão, se pretenda lamentar a sua morte recente e relativamente precoce - o autor faleceu em 1993 com 61 anos -, mas creio que também existe nela um ténue sinal crítico e de avaliação da sua produção literária. Iniciando-a já tarde nos anos setenta, Gert Hofmann elaborou uma prolífera obra narrativa (e dramática), experimentando, de romance para romance, técnicas e tonalidades estilísticas, numa tentativa constante de conjugá-las aos diversos temas tratados, de forma a atingir uma eficaz carga expressiva. O resultado foi uma produção muito diversificada, bastante traduzida, onde a crítica realça alguns títulos, como Der Bündensturz, Veilchenfeld e O Homem do Animatógrafo, este último também já editado pelas Ed. Asa, mas também onde esperou sempre, e com legitimidade, o romance bem “marcante” que nunca chegou a aparecer.
Dentro da sua diversidade, pode-se, contudo, observar algumas constantes na criação romanesca de Gert Hofmann, e uma delas, que também aparece em A Felicidade, está relacionada com o aproveitamento do “grotesco” - no prolongamento de uma tradição literária bem germânica - como forma de fazer sobressair a dimensão absurda de certos comportamentos modelados pela sociedade.
A Felicidade narra o dia de separação de um casal, visto pelo olhar de um dos filhos, uma criança de dez anos, que abandonará com o pai a casa familiar. No essencial, procura-se fazer sobressair como, aos olhos de uma criança, o comportamento adulto é, muitas vezes, estranho e incoerente e lhe provoca um sofrimento redobrado, visto que não só atinge os seus sentimentos e afectos, como, ainda por cima, é ocasionado por motivos que ultrapassam a sua capacidade de entender, dado que não lhe domina os princípios. No caso de uma separação conjugal, este sofrimento assume a dimensão de uma catástrofe, pois que é todo um universo de referências constituintes que de súbito desmorona: não só se esgarça o circuito afectivo no seio familiar, mas também, com o abandono de um determinado espaço físico, de todas as relações que a criança foi cimentando de forma ainda frágil, deixando-a perigosamente a pairar numa névoa onde todos os contornos se diluem, incluindo os da sua própria personalidade.
Com uma maestria técnica admirável, e já muito reconhecida noutros romances, Gert Hofmann respeita, com todo o rigor, o olhar do narrador, revelando como lhe aparecem informes e destituídos de sentido os comportamentos adultos e esquivando-se, ao mesmo tempo, a fáceis tentações que um tema como este permitiria. Repare-se, por exemplo, nas figuras parentais que se revelam de uma extrema mediocridade e de um ridículo atroz (um pai, um pretenso escritor, abissalmente indolente, que nunca escreveu uma linha, mas que justifica com esta “actividade” o seu constante estado de sonolento devaneio, e uma mãe, frustrada e mesquinha, cuja carência de afecto a bloqueia de prestar qualquer atenção aos filhos, perdida num primário coquetismo de quem vive em pânico a idade que se aproxima); contudo, isto são juízos que o leitor deduz, porque o olhar da criança, espelhado no romance, é o de uma enorme complacência pelos pais, assumindo-os com a “naturalidade”, tingida de alguma ironia, de quem não tem outras referências. Por outro lado, o autor controla uma fácil sentimentalidade - que não é comum à infância -, mostrando, pelo contrário, como a criança reage numa espécie de torpor às “ordens” e aos comportamentos contraditórios e, aos seus olhos, gratuitos dos adultos.
Neste contexto, tem um significado decisivo o título do romance. As crianças percebem que a separação dos seus pais é resultado da sua busca de “felicidade” (em particular da mãe), termo que para elas não tem um sentido específico e que aparece como uma espécie de entidade mítica que apenas impele os seus pais a comportamentos de mutismo e de agressão entre si. E isto ainda se lhes torna mais notório quando constatam que a figura masculina que vem “usurpar” o lugar do pai, assumindo, perante o seu olhar, uma convivência no espaço da casa e no corpo da mãe que é a encarnação do final de uma época da sua vida, nenhuma mudança virá trazer à pobreza de quotidiano em que sempre viveram. A busca de “felicidade” dos pais não passa, por isso, de um aberrante anjo infernal que desceu da consciência paterna para flagelar o universo dos filhos.
Inúmeras vezes parece que a narrativa de A Felicidade se constrói como se pretendesse ocultar, sob um véu de palavras, um sofrimento impossível de dizer, um núcleo de mágoa repleto de silêncio. E que, por conseguinte, aquilo que é verbalizado só serve para testar a atenção e a subtileza do leitor, desviando-o do que é, na verdade, dramático na acção. Por isso, como se a ponta de um iceberg conseguisse por uma única vez subir à tona de água, há que realçar, na estrutura do romance, a despedida do narrador do seu colega dilecto: poucas vezes se tem visto, na mais recente literatura, uma tão jubilante e intensa cena amorosa - no sentido mais genuíno desta expressão - pela contenção e singeleza do que é dito, pelos sentimentos contraditórios de paixão e ciúme, de desejo e inibição.
Mas são as qualidades reveladas em tantas passagens de A Felicidade que nos fazem lamentar que Gert Hofmann não tenha sabido dominar a sua mão, eliminando inúmeras páginas que nada acrescentam ao romance, nem à caracterização da situação, nem à definição das personagens. De facto, o romance “arrasta-se” inutilmente e provoca algumas vezes no leitor um tédio que poderá impeli-lo a abandonar a meio a obra e a perder algumas páginas que são de facto verdadeiras preciosidades.
Publicado no Público em 1997.
(Foto do Autor de Ursula Hasenkopf).
Título: A Felicidade
Autor: Gert Hofmann
Tradução: Maria Augusta Júdice
Editor: Edições Asa
Ano: 1997
278 págs., esg.