sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

ERIK FOSNES HANSEN



A VIDA COMO MELODIA



Os críticos estrangeiros mais atentos ao desenvolvimento das diversas literaturas nacionais já tinham constatado um facto que hoje, perante a consagração internacional de um número significativo de obras e de autores, parece ser indesmentível: as literaturas escandinavas, desde, pelo menos, os princípios da década de oitenta, revelam ser uma das mais estimulantes literaturas periféricas da actualidade. Tal facto não tem uma explicação simples. Porém, não há dúvida que existe nestas literaturas um conjunto de autores que expande uma auréola de “intensidade” sobre tudo o que no seio delas se produz e provoca nos editores literários de todo o mundo uma excepcional atenção ao que lá aparece. Decerto - e sem avaliar agora a sua qualidade literária - não são alheios a esta situação os estrondosos sucessos internacionais de autores como Jostein Gaarder e Peter Høeg. E, paralelamente, o aparecimento de um romance como este Concerto No Fim Da Viagem de Erik Fosnes Hansen, um escritor norueguês, com pouco mais de trinta anos, que arranca com uma obra de tal qualidade que fundamenta, de imediato, que se lhe profetize um significativo papel na literatura norueguesa e mesmo mundial.

Um dos aspectos intrigantes neste romance é o de nada ter de especificamente norueguês. Tanto podia ser escrito por um norueguês como por um autor de qualquer outra literatura importante europeia ou americana - e, note-se, só um juízo demasiado ligeiro poderá entender que isto está em contradição com o que acima ficou dito. O que este facto demonstra é que alguma coisa está mudar, rápida e profundamente, na literatura, resultante da circulação da informação em circuitos muito conexos e com uma “densidade” informativa que permitem um fácil e natural “despatriamento” cultural.

A trama de Concerto No Fim da Viagem é muito simples: o autor resolve ir buscar o tema do naufrágio do “Titanic” (e seria interessante que o leitor português tivesse a possibilidade de confrontar esta obra com Every Man for Himself de Beryl Bainbridge, uma importante escritora inglesa que ganhou o prémio Whitbread de ficção de 1996 com este romance sobre o mesmo tema) e “inventar” a vida dos sete músicos que constituíam a sua orquestra, que ficaram a tocar até ao último momento e desapareceram nas águas do oceano com o navio.

Para isso, Erik Fosnes Hansen rodeou-se de uma exaustiva informação documental de que são bem exemplificativas as minuciosas descrições que enchem o romance. Porém, não se julgue que o autor aposta em escrever um romance que seja estritamente histórico ou em elaborar um testemunho romanesco sobre uma época ou um facto (a prova disto é que resolve assumidamente “inventar” sete músicos e a sua vida e não recriar a vida dos músicos que de facto morreram no naufrágio do “Titanic”). Por outro lado, um tema como este poderia levar a um simbolismo fácil que associasse a viagem e o naufrágio do navio a uma certa concepção da vida.

No entanto, Erik Fosnes Hansen foge tanto a uma circunscrita concepção documental como a uma primária pretensão simbólica. O seu objectivo é o mais simples e, ao mesmo o tempo, o mais complexo que existe na literatura: contar “vidas”, utilizando aqui o estratagema do naufrágio do “Titanic” para legitimar a presença de vidas tão diversas no mesmo romance. Neste sentido, pode dizer-se que o que orienta o autor é uma concepção cósmica, polifónica mesmo, da vida, em que cada existência não passa de um singelo tema melódico ou de uma simples nota musical que lhe determina o “tom” (daí o sentido que tem iniciar cada capítulo com uma pauta com uma nota ou um breve tema musical).

Um dos curiosos efeitos dramáticos deste romance é resultante de o leitor saber à partida qual é o trágico fim destas vidas. Este dado dá uma redobrada significação a cada facto narrado: parece que todo o sofrimento ou toda a alegria é, ao mesmo tempo, “único” e “inútil” e que a existência não passa de um caos que só serve para deixar como memória uma muito diáfana “melodia”.

Por outro lado, parece que Erik Fosnes Hansen encara qualquer existência como que ferida por uma “fissura” primordial por onde se escoam os dias até ao seu fim (assim, a do chefe de orquestra, Jason Coward, - sem sombra de dúvidas, a mais importante e conseguida do romance - é a morte brutal dos pais; a de Spot Hauptmann, o pianista, é a de ser um menino prodígio encarado como uma atracção de feira; a de David Bleiernstern, o segundo violino, é uma intensa paixão traída; a de Petronius Witt, é o seu nome e a história familiar a ele associada; etc.). Neste sentido, pode dizer-se que o autor revela uma visão pessimista e determinista da vida, a que a felicidade dá fugazes momentos de cor, mas cujo desaparecimento ainda mais acentua a obscura vagabundagem dos dias.

Concerto No Fim Da Viagem demonstra que Erik Fosnes Hansen tem uma invulgar capacidade de análise e caracterização psicológica (a vida de Spot Hauptmann, por exemplo, é uma das mais perfeitas histórias de “loser” - desculpem o anglicismo - que alguma vez li) e, ao mesmo tempo, domina soberbamente um estilo de um lirismo trágico que dá a este romance uma belíssima coloração nocturna. A única coisa a críticar nesta obra é a de possuir, aqui e além, em particular nos encadeamentos narrativos entre as diversas “vidas”, um ritmo um pouco arrastado que quebra a sua unidade e desmotiva o leitor.

Por fim, devo assinalar que, mesmo não conhecendo a língua norueguesa, me parece que a transcrição para português é, em geral, boa. Só há a lamentar que o editor não acompanhe esta obra de elementos informativos que estimulem a sua aquisição no nosso mercado. Como é possível que a obra de um autor desconhecido de todo no nosso país possa obter sucesso, quando nem sequer é acompanhada por uma brevíssima nota biobibliográfica?


Publicado no Público em 1996.

(Foto do Autor de Marcel Leliënhof)



Título: Concerto No Fim Da Viagem
Autor: Erik Fosnes Hansen
Tradutor: Sissel Cardona
Editor: Editorial Presença
Ano: 1996
434 págs., esg.





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