segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

ANNA SEGHERS





O PODER COMO VÍRUS



O livro A Sétima Cruz é apresentado nos escaparates das livrarias com uma cinta roxa que transcreve uma longa citação de Jorge Amado a salientar a sua importância na resistência ao nazismo. O romance começa também com uma dedicatória “aos antifascistas da Alemanha, mortos ou vivos”. Chega, para quem não conheça a autora (Anna Seghers foi, durante algumas décadas, a escritora mais prestigiada da República Democrática Alemã), para situar esta obra: estamos no reino da literatura realista com intuitos edificantes e de exaltação política.

Os aspectos negativos deste tipo de produção literária já foram bastamente analisados: a omnipresença dos referidos intuitos ideológicos formativos paralisam o desenvolvimento das estruturas narrativas, canalizando-as para caminhos de duvidosa evidência. O próprio modelo, que a sombra tutelar desta literatura, Gyorgy Lukacs (que tanto apadrinhou este romance), se esforçou por conceber, serve como roteiro crítico para a desmontagem desta ficção.

Mas “marcar” esta obra porque oriunda de uma determinada literatura nacional (que tem alguns exemplos de ficcionistas muito interessantes, como é o caso de Christa Wolf), ou “epitetá-la” como pertencente a uma ficção precocemente envelhecida, é demasiado fácil.

É evidente que o espirito “jacobino” de vanguarda política, o morfismo ou amorfismo do povo conforme consegue ascender aos céus da consciência de classe, a presença sempre, sempre libertadora do herói positivo aí estão a revelar a data de um texto.

Mas A Sétima Cruz é também um digno representante de um período importante da história da literatura contemporânea. E não só porque consegue revelar uma capacidade de observação e análise invulgar, que o liberta duma concepção do real demasiado esquemática, como porque possui uma inegável eficácia dramática que, de certo modo, justifica a imediata notoriedade internacional que granjeou, mal apareceu: descrevendo uma fuga de um campo de concentração, o romance desenvolve uma série de fios de enredo directa ou indirectamente relacionáveis com a própria fuga, apresentados de forma sincrónica, o que permite construir um conjunto de quadros que transmite uma imagem facetada do comportamento do povo alemão sob o poder nazi.

Esse conjunto de situações expõe, desse modo, em vários contextos sociais e caracteriais, o resultado da acção dos diversos mecanismos de “irracionalidade” que regimes, como o nazi, em que um aparelho ideológico fechado procura normalizar todos os dinamismos sociais, têm de apelar para manter a “ordem” necessária à sua subsistência. A construção de um “inimigo”, etiquetado uniformemente pela propaganda, e a criação de uma “mimesis” colectiva, de tipo fetichista, pelo poder produzem ou uma falsa concertação em redor desse poder ou um clima de pânico social pelo seu carácter discricionário e pessoal que, por sua vez, origina na população uma busca da sobrevivência através do total alheamento do que se passa na esfera do político.

Mesmo os que se procuram “armar” de um outro poder contra este poder instituído, os “resistentes”, vivem com e no vírus deste, pois que nem conseguem libertar-se do medo, nem do sentimento de culpa pelos diversos graus de compromisso que o poder lhes exige para conseguirem sobreviver (e, de certo modo, continuarem a “resistir”). A Sétima Cruz é, antes do mais, um “tratado” sobre a forma como este sentimento condiciona a aproximação ao outro, no pensamento e na acção, e como motiva em cada um a vergonha de (con)viver com a brutalidade e a barbárie.

Aparentemente, nada parece escapar aos tentáculos desse poder. No entanto, alguns, como o pastor Ernest, conseguem viver uma relação atemporal com os elementos, amando e criando(-se), defendendo-se pelo prazer de viver contra o traumatismo da culpa. São esses - os que não são “tocados” pelo poder - que este mais teme, os que transportam a esperança do esquecimento com que se pode reconstruir uma nação. Os verdadeiros “heróis positivos”.


Publicado no Expresso em 1983.



Título: A Sétima Cruz
Autor: Anna Seghers
Tradução: Marília Vasques
Editor: O Oiro do Dia
Ano: 1983
534 págs., esg.



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