segunda-feira, 25 de março de 2013

HANIF KUREISHI




AS RUELAS SOMBRIAS DA VIDA



Por vezes, a criação de certos autores, por motivos complexos, parece responder a necessidades dos tempos. Quando isto sucede, estes escritores transformam-se em fenómenos com interesse sociológico, já que a projecção social da sua obra ultrapassa em muito a sua estrita competência literária. Parece gerar-se, entre a temática da sua produção e os tempos que correm, um efeito de vasos comunicantes que, por sua vez, origina o sentimento, entre os leitores, de que esses autores não só emitem um “testemunho” particularmente luminoso sobre as suas vidas, como lhes conferem sentido, e que tal sucede porque conseguiram acantonar-se, em consequência da sua arte e talento, num “local” que permite ter uma visão, ao mesmo tempo, arguta e extensa do seu confinado viver. É este sentimento que provoca nos leitores uma verdadeira situação de “dependência”, levando-os a transfigurar os autores em “deuses”, adorados nos altares mediáticos, e assumindo então esse “culto” proporções sociais que ultrapassam em muito o campo literário.

Um caso exemplar do que acima se expõe é o de Hanif Kureishi. Este escritor inglês, de origem paquistanesa, de quarenta e cinco anos, começou, no meio de alguma atribulação e ainda muito novo, uma carreira de dramaturgo nos finais da década de setenta; porém, o seu verdadeiro salto para a ribalta do mundo do espectáculo foi, na década seguinte, com a redacção do “script” do filme A Minha Bela Lavandaria, realizado por Stephen Frears, que, entre outros galardões, obteve uma nomeação para o Oscar de “Best Screenplay”. A partir daí, diversificou as suas actividades, realizando filmes (London Kills Me) e publicando romances (O Buda dos Subúrbios, O Álbum Negro e Intimidade, todos editados em Portugal pela Teorema). Mas o que deu a este escritor um estatuto invulgar de popularidade na Grã-Bretanha foi o facto de ser encarado como porta-voz literário por parte de um amplo grupo social, filho da miscigenação étnica e cultural resultante do fim do Império britânico, que, cheio de sonhos de integração e afirmação social, se viu, nos “anos de chumbo” do thatcherismo, sem emprego (ou com trabalho precário) e atolado nos circuitos da droga, da prostituição, dos “gangs” e dos negócios ilícitos. Foi essa população, com um peso demográfico crescente e cada vez mais marginalizada, que transformou Hanif Kureishi numa espécie de ser com poderes de clarividência e possuidor de um “olhar” omnipresente capaz de a perseguir nas sombrias ruelas de Londres e de Birmingham ou nas suas acanhadas e suburbanas moradas e descobri-la a efectuar subsistentes transacções ilegais ou em amores mais do que duvidosos e promíscuos.

Não admira, por isso, que, nos dias de hoje, toda a actividade literária, dramatúrgica e cinematográfica de Hanif Kureishi seja atentamente seguida por um número significativo de “cultores” que, em colóquios, clubes de leitura ou, muito em especial, através dos “sites” da “internet” (esses novos espaços públicos, onde, de forma sintomática, aparecem as mais actuais motivações sociais), analisa, comenta e discute a mais recente entrevista ou a última produção literária do seu adulado “autor”. Talvez tudo isto, em termos de efectiva criação literária, possa vir a revelar-se de pouco interesse. Mas uma coisa é certa: mostra quanto peso ainda pode ter a literatura como instrumento de mobilização de consciências para a sua concreta situação existencial.

É deste escritor que foi publicado agora em Portugal a sua primeira colectânea de contos, intitulada Amor Em Tempos Tristes (a edição original é de 1997; mas foi em 1998, quando Hanif Kureishi fez um guião fílmico de um dos contos, O Meu Filho Fanático, realizado mais tarde por Udayan Prasad, que esta obra deu origem a um amplo debate público). No título do livro está todo o seu programa. Isto é: este conjunto de contos pretende exemplificar como as relações afectivas mais intensas das pessoas se encontram, nos dias de hoje, irremediavelmente degradadas.

No entanto, não se pode dizer que, no seu conjunto, esta colectânea tenha dado origem a uma obra admirável. Pelo contrário, um bom número destes dez contos são banais e alguns chegam mesmo a tocar as raias da mediocridade (repare-se, por exemplo, na magnífica peça de prosa intitulada O Conto do Excremento: como se poderá classificar uma história onde se procura “associar” o comportamento de uma personagem - que é apresentada como um crápula - à merda que faz?). Quem tem acompanhado de perto, e se agradou da anterior produção narrativa deste escritor, não pode esconder a sua desilusão perante estas páginas. Além disso, estes contos estão embebidos de um moralismo duvidoso e que pouco consegue perceber ou interpretar. De facto, parece-nos que Hanif Kureishi perdeu uma excelente oportunidade para construir uma obra que procurasse reflectir sobre as intrigantes mutações que, nos dias de hoje, têm sofrido as relações amorosas e qual o papel que nelas têm o sexo e o erotismo.

A contribuir para esta avaliação negativa está o carácter heteróclito desta colectânea, dando a sensação (se é intencional, não se compreende o sentido) de que o autor não conseguiu encontrar o “tom” que desse unidade ao conjunto. Os contos não só apresentam dimensões muito diferentes, como utilizam estratégias narrativas e “filiações” estéticas muito distintas e, por vezes, até antagónicas - para não dizer conflituosas. Assim, há nesta colectânea de tudo como na botica: desde o realismo cru e violento de Em Tempos Tristes até ao “psicadelismo alucinado” de O Conto do Excremento ou ao “non-sense” kafkiano e surrealizante de As Moscas.

Poucos contos conseguem, de facto, destacar-se neste triste conjunto: saliento, no entanto, por motivos principalmente sociológicos, os intitulados Nós Não Somos Judeus e O Meu Filho Fanático, e, por razões literárias, os Com a Tua Língua Na Minha Garganta e Ilusões Nocturnas.

Os dois primeiros textos pretendem testemunhar, de forma acutilante, os confrontos civilizacionais e culturais porque passam as minorias étnicas (no caso presente, indo-paquistanesas) ao procurarem integrar-se na sociedade britânica. Se, no primeiro caso, o conto se centra nos conflitos rácicos entre jovens adolescentes no meio escolar, realçando a sua dimensão de brutalidade primária e, por isso mesmo, muito traumatizante, já o segundo caso - de temática mais original - se debruça sobre as dificuldades familiares que os emigrantes islamitas, na sua ânsia de acatarem os valores e os comportamentos ocidentais de molde a ascenderem mais facilmente às condições materiais da restante comunidade, se vão defrontar, ao verem os seus filhos - a primeira geração nascida em Inglaterra - a repudiarem esses valores e comportamentos, deitando por terra todo o seu esforço, e a abraçarem os ideais fundamentalistas.

Os dois últimos contos referidos são os únicos que nos fazem lembrar a qualidade literária do autor de Intimidade. O primeiro, Com a Tua Língua Na Minha Garganta, mostra não só uma inegável perícia de construção narrativa (o final é admirável pela forma como “resolve” o conto), mas também como as relações amorosas e familiares, no seio dos embates de valores civilizacionais do Ocidente e do Oriente, podem mergulhar num ambiente aviltante, em que as entidades se perdem numa nebulosidade de dor e solidão. Porém, a minha preferência vai para o conto Ilusões Nocturnas. De facto, é neste breve texto, onde se narra os encontros amorosos semanais de um casal que, numa casa vazia e no mais rigoroso silêncio, atinge a cumplicidade afectiva e erótica que lhe foi de todo impossível descobrir nas relações conjugais com pessoas mais próximas, intelectual e emocionalmente, que Hanif Kureishi consegue alcançar o nível de reflexão e análise que permite levantar um pouco o véu sobre estes “tristes amores” onde alguns de nós se consomem até ao desencanto e ao envelhecimento.


Publicado no Público em 2000.

(Foto do Autor de Sarah Lee).


Título: Amor em Tempos Tristes
Autor: Hanif Kureishi
Tradução: Isabel Paula
Editor: Teorema
Ano: 2000
265 págs., esg.





domingo, 24 de março de 2013

CHRISTA WOLF




A MULHER QUE QUER CONHECER



Christa Wolf afirmou, em inúmeras entrevistas, que só lhe é possível atingir um efectivo conhecimento da realidade, que entende como fundamental na obra literária, através de um confronto consigo própria como autora e cidadã, de forma a expressar uma inequívoca e incómoda sinceridade. Para isso, procura aplicar a esse real uma racionalidade exigente, desvendando as incongruências e as contradições do presente optimismo civilizacional. Este projecto literário, que entronca numa ampla tradição de origem “iluminista” da Europa central, tem assumido uma estratégia narrativa que entrelaça, por sistema, realismo, uma presença actuante de figuras míticas e invenção formal.

Mas esta sobrevalorização na criação literária das componentes cognitivas e intervencionistas — de certo modo, ainda um resíduo ideológico do realismo socialista de que a autora se afastou (recorde-se, no entanto, que Christa Wolf sempre reconheceu uma influência determinante na obra de Anna Seghers) —, assim como o seu empenhamento unívoco com o real, transformou a autora numa irremediável escrava desse mesmo real e, por isso, permanentemente arrastada pelos ventos da História. Repare-se, por exemplo, na constante atitude ambígua de Christa Wolf em relação à existência da República Democrática Alemã: membro influente do partido comunista da Alemanha de Leste até se tornar óbvio o desmoronar do regime, confessa agora, num recente romance autobiográfico, ter sido perseguida em termos políticos; sistemática opositora da reunificação alemã, reconhece hoje que foi ingénua e que todo esse processo era inevitável.

Unter den Linden, a colectânea de histórias agora traduzida, tem, no entanto, um estatuto original no conjunto da obra de Christa Wolf. Como a autora explícita no subtítulo, esta colectânea reúne “três histórias inverosímeis”; porém, o adjectivo que classifica estas histórias não esta a referenciar a relação com o real, mas uma perspectiva narrativa invulgar. Assim, a história que dá título à colectânea procura conciliar os estados de vigília e de sonho na forma de narrar; a segunda, recuperando o Gato Murr de Hoffmann, tem este felino como narrador; e a terceira, centra-se numa mulher que, através de uma experiência química, se transforma física e, até certo ponto, espiritualmente num homem.

A primeira história, tendo como eixo espacial a avenida principal de Berlim-Leste, procura recriar, de forma delirante, a presença excessiva desta rua nos destinos desencontrados dos habitantes daquela cidade, mostrando como a sua existência fantasmagórica é feita de pequenas cedências e desistências até a aceitação da resignada mediocridade que é imposta por todo o aparelho social. Mas, de modo notório, a autora não conseguiu dominar o registo de confluência da vigília e do sonho (é sabido que a utilização do delírio, como forma narrativa, é uma navalha afiada bem perigosa de manejar), e esta história é, no conjunto, a menos conseguida e interessante.

A história do gato Max é uma crítica irónica e mordaz às pretensões de elaborar um sistema totalizante que resolva e organize de forma racional a felicidade humana. O que o gato descobre, através do seu olhar distante de felino sobre os trabalhos pseudo-científicos do seu dono e da sua equipa, é que essas pretensões são não só, de forma estrutural, arbitrárias como reveladoras de uma impotência generalizada em assumir a dimensão corpórea, física, da existência. Daí que, quando o seu dono resolve delinear ciberneticamente a personalidade do “homem novo”, o paradigma obtido seja o de um ser reflexo, descaracterizado e submisso à vontade exterior.

A terceira história, contudo, destaca-se de tal forma na colectânea que, por si só, era merecedora de uma recensão. De facto, é neste relatório de um Tirésias ao contrário que a autora mais se confronta e arrisca, conseguindo realizar um autêntico (e, como é natural, contestável) balanço da situação actual das relações inter-sexuais. De forma muito inteligente, Christa Wolf demonstra como o sexo é determinante não só para o modo de olhar, mas também para o modo como se é olhado, sendo impossível um entendimento neutro; de como o modo de olhar estabelece universos, destinos e linguagens distintos, provocando uma vigilância e uma desconfiança quase permanente nas relações entre os dois sexos; e, por fim, de como qualquer tentativa de identificação e conhecimento integral do outro desejado é uma forma perversa de amor e, por isso, punível pelos deuses (como é o caso de Tirésias que foi cego).

Naturalmente, semelhantes objectivos, numa breve história, transformam-na num trabalho polémico (por exemplo, a imagem concebida sobre o modo como hoje se manifesta a sensibilidade masculina é demasiado sombria). No entanto, são textos como estes, pelas suas incidências e repercussões, que permitem perceber como, para além de todas as suas ambiguidades e fragilidades, Christa Wolf conseguiu obter um estatuto de autora fundamental na literatura de língua alemã contemporânea.


Publicado no Público em 1991.


Titulo: Unter Den Linden
Autor: Christa Wolf
Tradução: Ana Maria Bernardo
Editor: Edições Cotovia
Ano: 1991
121 págs., €1,00