A MULHER QUE QUER CONHECER
Christa Wolf afirmou, em inúmeras entrevistas, que só lhe é possível atingir um efectivo conhecimento da realidade, que entende como fundamental na obra literária, através de um confronto consigo própria como autora e cidadã, de forma a expressar uma inequívoca e incómoda sinceridade. Para isso, procura aplicar a esse real uma racionalidade exigente, desvendando as incongruências e as contradições do presente optimismo civilizacional. Este projecto literário, que entronca numa ampla tradição de origem “iluminista” da Europa central, tem assumido uma estratégia narrativa que entrelaça, por sistema, realismo, uma presença actuante de figuras míticas e invenção formal.
Mas esta sobrevalorização na criação literária das componentes cognitivas e intervencionistas — de certo modo, ainda um resíduo ideológico do realismo socialista de que a autora se afastou (recorde-se, no entanto, que Christa Wolf sempre reconheceu uma influência determinante na obra de Anna Seghers) —, assim como o seu empenhamento unívoco com o real, transformou a autora numa irremediável escrava desse mesmo real e, por isso, permanentemente arrastada pelos ventos da História. Repare-se, por exemplo, na constante atitude ambígua de Christa Wolf em relação à existência da República Democrática Alemã: membro influente do partido comunista da Alemanha de Leste até se tornar óbvio o desmoronar do regime, confessa agora, num recente romance autobiográfico, ter sido perseguida em termos políticos; sistemática opositora da reunificação alemã, reconhece hoje que foi ingénua e que todo esse processo era inevitável.
Unter den Linden, a colectânea de histórias agora traduzida, tem, no entanto, um estatuto original no conjunto da obra de Christa Wolf. Como a autora explícita no subtítulo, esta colectânea reúne “três histórias inverosímeis”; porém, o adjectivo que classifica estas histórias não esta a referenciar a relação com o real, mas uma perspectiva narrativa invulgar. Assim, a história que dá título à colectânea procura conciliar os estados de vigília e de sonho na forma de narrar; a segunda, recuperando o Gato Murr de Hoffmann, tem este felino como narrador; e a terceira, centra-se numa mulher que, através de uma experiência química, se transforma física e, até certo ponto, espiritualmente num homem.
A primeira história, tendo como eixo espacial a avenida principal de Berlim-Leste, procura recriar, de forma delirante, a presença excessiva desta rua nos destinos desencontrados dos habitantes daquela cidade, mostrando como a sua existência fantasmagórica é feita de pequenas cedências e desistências até a aceitação da resignada mediocridade que é imposta por todo o aparelho social. Mas, de modo notório, a autora não conseguiu dominar o registo de confluência da vigília e do sonho (é sabido que a utilização do delírio, como forma narrativa, é uma navalha afiada bem perigosa de manejar), e esta história é, no conjunto, a menos conseguida e interessante.
A história do gato Max é uma crítica irónica e mordaz às pretensões de elaborar um sistema totalizante que resolva e organize de forma racional a felicidade humana. O que o gato descobre, através do seu olhar distante de felino sobre os trabalhos pseudo-científicos do seu dono e da sua equipa, é que essas pretensões são não só, de forma estrutural, arbitrárias como reveladoras de uma impotência generalizada em assumir a dimensão corpórea, física, da existência. Daí que, quando o seu dono resolve delinear ciberneticamente a personalidade do “homem novo”, o paradigma obtido seja o de um ser reflexo, descaracterizado e submisso à vontade exterior.
A terceira história, contudo, destaca-se de tal forma na colectânea que, por si só, era merecedora de uma recensão. De facto, é neste relatório de um Tirésias ao contrário que a autora mais se confronta e arrisca, conseguindo realizar um autêntico (e, como é natural, contestável) balanço da situação actual das relações inter-sexuais. De forma muito inteligente, Christa Wolf demonstra como o sexo é determinante não só para o modo de olhar, mas também para o modo como se é olhado, sendo impossível um entendimento neutro; de como o modo de olhar estabelece universos, destinos e linguagens distintos, provocando uma vigilância e uma desconfiança quase permanente nas relações entre os dois sexos; e, por fim, de como qualquer tentativa de identificação e conhecimento integral do outro desejado é uma forma perversa de amor e, por isso, punível pelos deuses (como é o caso de Tirésias que foi cego).
Naturalmente, semelhantes objectivos, numa breve história, transformam-na num trabalho polémico (por exemplo, a imagem concebida sobre o modo como hoje se manifesta a sensibilidade masculina é demasiado sombria). No entanto, são textos como estes, pelas suas incidências e repercussões, que permitem perceber como, para além de todas as suas ambiguidades e fragilidades, Christa Wolf conseguiu obter um estatuto de autora fundamental na literatura de língua alemã contemporânea.
Publicado no Público em 1991.
Titulo: Unter Den Linden
Autor: Christa Wolf
Tradução: Ana Maria Bernardo
Editor: Edições Cotovia
Ano: 1991
121 págs., €1,00
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