EROTIZE-SE O MUNDO!
Na obra de Mário Vargas Llosa, o erotismo tem sido um elemento temático mais ou menos constante. Recorde-se, por exemplo, e apenas para referir os casos mais evidentes, obras como Pantaleão e as Visitadoras, História de Mayta, Quem Matou Palomino Molero? e A Tia Júlia e o Escrevedor. Porém, a temática erótica só irrompe de forma soberana em O Elogio da Madrasta. Talvez por isso, esta novela tenha sido encarada por alguma crítica - de uma forma preconceituada - como uma espécie de simples “divertimento” que permitiu ao escritor evidenciar a sua perícia técnica em termos narrativos, pois conseguia arrastar o leitor para um confronto com os seus fantasmas mais íntimos e inebriá-lo, possivelmente, com algumas “tentações” inconfessáveis.
Sucede que Vargas Llosa resolveu regressar a esta sua obra e provar, através de uma “sequela”, que não entendia O Elogio da Madrasta como uma obra menor e que, pelo contrário, esta tinha um papel determinante na evolução do seu pensamento. E, com esse fim, redigiu Os Cadernos de D. Rigoberto, agora traduzido e editado no nosso país, dando uma volta de trezentos e sessenta graus à trama do livro anterior e encerrando (?) com um final feliz o romance que tinha deixado “aberto” de uma forma funesta.
A organização de Os Cadernos de D. Rigoberto denuncia com clareza uma intencionalidade “funcional”. De facto, o romance organiza-se em longos capítulos que, quase sempre, se dividem em quatro partes: uma primeira, em que se narram as “visitas” do enteado Fonchito à casa em que a madrasta foi viver, após a sua separação de D. Rigoberto, e em que aquele utiliza, como instrumento encantatório e de sedução, a obra pictográfica de Egon Schiele; uma segunda, onde se expõem os “delírios” de que D. Rigoberto se sente “possuído”, em consequência da ferida aberta pela ausência de Lucrécia, a “madrasta”; uma terceira, constituída por violentas imprecações de D. Rigoberto contra os grupos sociais que considera serem seus inimigos; por fim, uma última composta por cartas anónimas em que os “três” amantes se insinuam entre si.
Esta forma de organização de cada capítulo permite evidenciar algumas considerações determinantes para o autor nesta temática: primeiro, que não existe erotismo sem uma mediação estética e que ele é, por conseguinte, uma resultante da educação do gosto (e dos sentidos) através da arte; segundo, que o erotismo é, antes do mais, uma criação intelectual (de valor e importância similar à criação artística, científica, etc.) que utiliza o objecto amado para sua concretização e consequente fruição; terceiro, que o erotismo é a manifestação mais exaltante do individualismo, entendendo este como o quadro ideológico, criado pela civilização ocidental, que mais longe levou a emancipação do homem; por último, que o erotismo é um jogo comunicante que balança sistematicamente entre a ocultação e o desvendamento.
Percebe-se, assim, que existe nesta obra - e este é um dos seus aspectos mais interessantes e, de certo modo, inovadores - uma intencionalidade de “manifesto ideológico”. Há, portanto, uma vocação militante em Os Cadernos de D. Rigoberto em favor de uma erotização do mundo, entendendo-se esta como um “estádio superior” da presente sociedade.
Como todas as obras com esta vocação, Os Cadernos de D. Rigoberto tem as suas contradições e limites. Mas, por isso mesmo, esta obra deveria motivar algum debate e reflexão. Pela minha parte, gostaria de salientar o facto de o erotismo possuir - em consequência do motor do desejo - uma lógica própria que absorve todas as manifestações humanas, utilizando-as como instrumento das suas próprias “construções imaginárias”, mas que não se sujeita a nenhuma delas, da mesma forma que a fruição alimentar (e lamento ter que cair, mais uma vez, na estafada analogia entre comida e sexualidade) pode ter, por exemplo, uma componente estética, mas não é, decerto, a mais determinante.
Esta observação é importante, porque parece-me existir em Os Cadernos de D. Rigoberto uma espécie de “desculpabilização artística” do erotismo que é inegavelmente equívoca. A tentativa de sobrevalorização do erotismo por via da arte pode ser uma forma hipócrita de não lhe compreender a especificidade: o desejo, na sua busca de uma afirmação cada vez mais plena e intensa, encena-se num ritual onde a coreografia e os seus símbolos-fétiches (objectos, palavras, espaços, etc.) têm sempre um tratamento “personalizado” e irrepetível. A não compreensão deste facto continua a originar uma falsa demarcação entre erotismo e pornografia (será ainda admissível entender que a pornografia, desde que tenha uma componente artística, deixa de ser pornografia?), à condenação liminar desta, e a repudiar - mais uma vez - o facto de a satisfação partilhada do desejo transfigurar em sublime todos os meios e formas que utiliza para se metamorfosear e renascer.
Mesmo reconhecendo a generosidade ética e ideológica de Os Cadernos de D. Rigoberto e a pertinência do seu contributo para uma compreensão mais rigorosa dos comportamentos eróticos nos dias de hoje, deve ser salientado que a principal limitação desta obra está ao nível artístico. Não que Mário Vargas Llosa não faça valer, mais uma vez, os seus inegáveis méritos estilísticos e narrativos (algumas das imprecações de D. Rigoberto são deliciosos e bem humorados textos de prosa)… Contudo, o autor não consegue libertar-se de uma excessiva “previsibilidade” da trama que permite o leitor prevenir-se contra a envolvência sensual com que o autor procura enredá-lo com vista a uma mais fácil aceitação das suas teses e posições.
Publicado no Público em 1998.
Título: Os Cadernos de Dom Rigoberto
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradução: J. Teixeira de Aguilar
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1998
265 págs., € 16,90
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