A FAMÍLIA: DA NOSTALGIA À VORACIDADE
Cada
vez menos existem dúvidas de que alguma inflexão, a partir dos últimos anos da
década de setenta, ocorreu no reino da ficção e do romanesco. Se, durante cerca
de vinte anos, a inquietação criativa dominante, na área do romance, circulou
em redor de uma reflexão expressa sobre a problemática da produção textual e de
uma atitude arrojada de experimentação das técnicas narrativas, nos últimos
anos, talvez por exaustão deste tipo de trabalho, tem-se visto renascer uma literatura
que coloca a tónica no engendrar do enredo ou, por outras palavras, uma viragem
da ficção que, integrando alguma da anterior reflexão, se centra mais sobre o
contorno das personagens, numa mais funcional representação da temporalidade e
numa mais imaginativa, e mesmo fantasista, caracterização e conexão das situações
dramáticas.
É
certo que já fora sintoma disto tudo a receptividade espectacular que a
literatura latino-americana teve durante a década de setenta; mas, na generalidade,
esta literatura nascia ainda sob pressão de um constringente “corpus” ideológico.
Ora, a ficção recente quer-se, antes de tudo, acentuadamente “ingénua”, isto é,
que os seus efeitos éticos e políticos sejam mais “ecos dispersos de uma leitura”
do que “causas marcantes de uma produção”.
Face
a esta ficção, creio que o mais fácil é determinar-lhe alguns epítetos ou acusá-la
de ser mais um “modismo”. Porém, poderá ser muito mais interessante perceber, pelo
contrário, com alguma humildade, qual o “conjunto de sinais” que a crítica internacional
tem tentado desvendar na mais recente ficção norte-americana e que permite identificá-la
com uma similar prática literária de alguns autores do Velho Continente.
Vem
isto a propósito da edição portuguesa de dois romances, O Estranho Mundo de Garp
e O
Hotel New Hampshire, aparecidos com a avalanche de um tremendo sucesso
editorial, mas que, em paralelo, foram considerados, pela crítica
americana a que tive acesso, como marcantes na sua actual produção literária. O
autor, John Irving, nascido em 1942, “writer-in-residence” da Universidade de
Iowa, tinha publicado três desapercebidos romances (Setting Free the Bears,The Water-Method
Man, The 158-Pound Marriage) e algumas “short-stories”, quando, em
1978, saiu, em dupla edição, londrina e novaiorquina, o The World according to Garp.
De imediato, toda a sua anterior produção foi reavaliada, e a edição, em 1981,
de The
Hotel New Hampshire serviu para redobrar os elogios e os encómios.
Os
romances de John Irving envolvem de tal modo o leitor numa teia de sedução que
se torna por vezes difícil precisar as motivações de semelhante efeito. De
facto, existe nestes romances uma ampla tonalidade narrativa, que vai desde o
humor à comoção, um misto de rudeza e ternura, que, por sistema, à sua
leitura, nos faz vir à memória dois dos mais importantes ficcionistas
americanos deste século: F. Scott Fitzgerald e J. D. Salinger. Por outro lado,
há, nas obras de John Irving, uma obcecante presença de certos elementos ambíguos
(os ursos, as violações, as mutilações, a cegueira, Viena, etc.) que prenunciam
o caldeamento da experiência pessoal numa prodigiosa imaginação romanesca, onde
se encadeia situações dramáticas, comuns e incomuns, com personagens, muitas vezes
demarcados por originais comportamentos simbólicos, mas que, de modo notório, parecem
referenciar tipos reais (é o caso do urso Suzie, das Ellen jamesianas, do transsexual
Roberta Muldoon, da anã que escreve para crescer, etc.).
Mas,
para lá destes efeitos estilísticos, existe, nestes romances de John Irving, uma
interessante perspectivação da problemática relativa à família (problemática essa
bem comum à moderna ficção americana e que, muitas vezes, se encontra acompanhada
por uma, aparentemente “leviana”, crítica à instituição psicanalítica).
A
incapacidade manifesta da instituição familiar em se integrar nos novos
quotidianos, industriais e urbanos, em entender os conflitos geracionais e em
adequar-se a uma mais abrangente aceitação dos comportamentos sexuais (a psicanálise, ao
contribuir para uma melhor inteligibilidade da componente sexual na malha de relações que
constitui a família, permitiu percepcionar a sua intencionalidade, alterando, de um modo
radical, a forma de a encarar), provocou, nos últimos vinte/trinta anos, uma
dinâmica social que motivou o aparecimento de “modus vivendi” fragmentários e contigentes
que, por sua vez, contribuíram para uma acentuada desagregação da instituição
familiar. Depois de uma fase mais ou menos eufórica a esse "modus vivendi", atingiu-se o momento em que chegaram à idade adulta os seus "frutos" (em gíria, os ”filhos
do divórcio”), o que propiciou o aparecimento de um nostálgico posicionamento
teórico sobre a família: ora, neste sentido, os romances de John Irving são sintoma
de uma geração.
O
Estranho Mundo de Garp
e O
Hotel New Hampshire são dois característicos “romances de formação”, em que
se narra o nascimento, vida e morte de uma família. Mas, enquanto no primeiro,
o núcleo narrativo se desenrola em redor da família que a personagem principal
constitui, em O Hotel New Hampshire, a acção desenvolve-se na família originária
do narrador até à formação da sua.
Por
outro lado, enquanto no primeiro, Garp nasce numa família estruturada na ausência
paterna, motivando que toda a sua “educação sentimental” seja feita numa
obsessiva protecção daquela que ele próprio constitui, no segundo, a “educação
sentimental” do narrador realiza-se na observação dos comportamentos dos membros da família originária, parecendo que
o processo posterior se transforma num mero epílogo do essencial de uma existência.
Mas,
em qualquer dos romances, há uma mesma visão da instituição familiar: as relações
que se estabelecem no seu seio são “perenes e constantes”, sendo este o seu
elemento caracterizador. Isto quer dizer que estas relações não estão dependentes
do comportamento dos seus membros, que este poderá motivar flutuações conjunturais,
mas nunca situações de fractura.
Assim,
no “interior” da família, para lá de todos os índices que esta possa atingir de
tragédia ou de felicidade, nada se passa que seja provocado a partir de dentro,
visto que todos os seus afectos se mantêm em linha contíinua (apenas com débeis
modulações) sem sofrerem o desgaste do tempo e pairando de forma “a-histórica”.
Este
entendimento da família sobressai, com uma nostálgica sentimentalidade, em toda
a acção destes romances. Mas, em O Hotel New Hampshire, é, em particular,
notória a importância que John Irving reconhece a esta “bolsa emocional e afectiva”
na formação caracteriológica de todos os seus membros, encarando-a como
complemento fundamental da gestação incipiente dos homens.
Contudo,
do “exterior”, esta “bolsa emocional e afectiva” é facilmente rasgável,
vertendo, assim, as águas letárgicas (porque eliminam a angústia do tempo) do
afecto. Sob a força hipnótica do Outro (nome que aqui iremos dando à Natureza, em particular,
às suas imanências que são a Morte e a Sexualidade, sempre soberanas e nómadas),
os seus membros poderão ser acometidos de um “impulso de fuga”, de des-identificação,
que os impelirá a querer despedaçar os cordões que os prendem.
No
entanto, esse impulso de fuga, e isto é bem expresso nas primeiras partes de O
Estranho Mundo de Garp, é mutilante, deixando marcas físicas em todo o
corpo familiar, já que o “exterior”, onde não existem as defesas institucionais,
é brutal, isto é, pertencente ao reino da Natureza: as inúmeras mutilações, que
aparecem nos dois romances, têm este sentido; e a obsessiva presença da violação
é sintoma também desta compreensão da Natureza, visto que é sempre entendida como
consequência trágica, e última, de um impulso sexual não matizado por essa teia
de relações perenes e constantes que caracteriza, segundo Irving, a família.
Daí
que a família provoque o aparecimento de mecanismos de “vigilância” (o expressivo
título de uma das ‘short-stories’ de Garp) em cada membro: cria-se uma teia de
fios de sombra, paralela à dos afectos, entre todos os membros da família, obrigando-os
a um comportamento hibrido entre o hedónico e o agónico (Helen Garp, quando sente
a urgência de uma relação extraconjugal, afirma: ”A questão sou eu. Quero que alguém me preste atenção.”). E a quebra
de “vigilância”, resultante dessa atracção pelo “exterior”, provoca culpabilizações
(há, em John Irving, vestígios de um sentimento “laicizado” de pecado) que, ao
enfraquecerem cada membro face aos outros e a si próprio, estabelecem estatutos
de hierarquia que originam um reforço dos códigos de “vigilância” sobre os
membros enfraquecidos: a ansiedade da personagem principal de O
Estranho Mundo de Garp nasce deste modo.
Contudo,
uma obsessiva vigilância, uma desconfiança radical em relação ao “exterior”,
cria uma "ambiência laboratorial", dentro da instituição familiar, que agudiza o
impulso de fuga dos seus membros. Foi esta ambiência que arrastou toda a família
de Garp, no primeiro romance agora editado, para um aparatoso acidente rodoviário,
situação limite expressivamente descrita e que nos parece crucial na obra de
John Irving, em particular se entendermos os romances O Estranho Mundo de Garp
e O
Hotel New Hampshire como integrantes de uma assumida continuidade.
A
partir desse momento, as personagens dos romances de John Irving reflectem a
consciência de que a ansiedade de defesa provoca uma falha de simpatia pelo
Outro e que essa falha só fragiliza a célula familiar no confronto com a intolerância
exterior. De um modo estratégico, começa-se a assumir que a consolidação daquela passa
pela quebra do isolamento celular e pela abertura à pregnância do Outro: toda a
parte final de O Estranho Mundo de Garp descreve a abertura ao exterior da instituição
familiar e como esta beneficia, vinda sempre de fora, da acção do tempo.
Porém,
enquanto em O Estranho Mundo de Garp, esta abertura ao “exterior”, é
entendida (e descrita) como uma inevitabilidade trágica, em O
Hotel New Hampshire, romance com uma estrutura muito mais equilibrada,
a presença do tempo é encarada como o elemento épico que redimensiona a existência
familiar: é este que obriga cada um dos seus membros a um constante confronto,
no “exterior”, com todas as formas de intolerância que o caracterizam (os
terroristas de Viena) ou a defenderem-se da “lascívia” (na terminologia de Garp), isto é, dessa sexualidade
exterior à já referida teia de relações perenes e constantes (as prostitutas de
Viena).
Mas
se a passagem do tempo vai semeando sinais de Morte no seio da família, e
fazendo sempre aparecer a ansiedade e a angústia da sua presença (que nestes
romances têm divertidas, e ternas, representações simbólicas: o sapo subaquático,
o embalsamado cão Sorrow - que vem sempre à tona de água), ela vai também permitir
o reconhecimento do Outro. Na sua busca, a família torna-se um hotel em
algures, onde toda a gente pode entrar, desde que “fique aparafusado para toda a vida”, e ao mesmo tempo, um ser
voraz, onde tudo deve e pode passar-se (é desse modo que fica “legitimada” a
paixão, louca e insuportável, entre irmãos).
Existe,
por isso, nestes romances de John Irving, uma gradual convivência com a
passagem do tempo (“Os homens de quarenta
anos/Aprendem a fechar docemente/As portas dos quartos/A que não regressarão”,
diz um poema de Donald Justice, citado em O Hotel New Hampshire) e uma insaciável
vontade de viver e de sonhar (o “urso” que sempre se procura e que nos dará a
ilusão da inencontrável felicidade) que transmitem um saudável optimismo. Talvez
se deva a este contraponto optimista, pano de fundo de todos os registos estilísticos
de John Irving, a razão por que estes romances, mesmo com as suas contradições
e ingenuidades, se tornaram peças fundamentais de uma literatura que, cada vez
mais, vive submersa num ambiente social em que só se referencia a crise e a
descrença.
Publicado no Expresso
em 1985.
Título: O Estranho
Mundo de Garp
Autor: John Irving
Tradutor: Maria
Adelaide Namorado Freire
Editor: Distri
Editora
Ano: 1984
2 vols. (253 + 267 págs.), esg.
Título: O Hotel New
Hampshire
Autor: John Irving
Tradutor: Ana Falcão
Bastos
Editor: Distri
Editora
Ano: 1985
421 págs., esg.
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