A ÚNICA CONSOLAÇÃO
É costume afirmar-se que a Turquia é o país que faz a
ponte entre o Ocidente e o Oriente. De facto, ao longo dos séculos, por boa ou
má fortuna, tem-se reflectido, nas terras e nas gentes daquele país, essa
situação de “lugar de passagem” entre duas civilizações. Mas, por isso mesmo, a
Turquia tem também o estatuto - esse sim, sem sombra de dúvidas, nefasto para o
seu povo – de país periférico para as duas civilizações e, por consequência, de
ser mal conhecido e interpretado por ambos os lados (basta referir as morosas e
muito questionadas negociações para a sua entrada na União Europeia e, por
outro, os atentados e as acusações de “país traidor” que recebe dos movimentos
e das posições islamitas mais radicais). Além disso, foi também esta situação
de confluência que motivou, na história contemporânea da Turquia, um constante
percurso sinuoso entre uma aproximação ao Ocidente e uma defesa intransigente
de certos valores tradicionais e de uma matriz pró-oriental que, à primeira
vista, parece ter gerado um problema de identidade cultural e nacional.
Tudo isto tem dado origem a que haja um
significativo desconhecimento da cultura e da literatura turcas e tenha sido
difícil a penetração dos seus autores e das suas obras nos circuitos
internacionais da edição. Não admira, por conseguinte, que a literatura turca seja quase
de todo desconhecida em Portugal, mesmo entre os grandes leitores. Segundo
creio, para além de Nazim Hikmet e Yashar Kemal – as duas figuras patronais da
literatura turca do séc. XX – poucos mais autores turcos foram traduzidos para
português. Por isso, tem que ser louvado, antes do mais, o esforço da
Ed. Presença em traduzir e publicar as obras de Orhan Pamuk (foi agora
publicado o romance Os Jardins da Memória e antes já tinha publicado A
Cidadela Branca), um dos raros autores turcos que é hoje lido e
apreciado em todo o mundo.
Orhan Pamuk nasceu em Istambul, em 1952, e começou
por estudar arquitectura e mais tarde jornalismo na Universidade daquela cidade
(onde sempre tem vivido, para além de algumas temporadas em Nova Iorque). Foi
no final da década de setenta que ganhou o reconhecimento literário nacional ao
vencer, com o original que irá ser o seu primeiro romance, publicado só em
1983, o prémio literário de um dos mais conceituados jornais turcos, o
“Milliyet”. Durante as décadas seguintes, publicou mais sete romances e um
guião cinematográfico, ganhando com eles os principais prémios nacionais. Já
com a tradução francesa do seu segundo romance, Sessiz Ev (com o título francês
de La
Maison du silence), ganhou o primeiro prémio internacional, o “Prix de
la Découverte Européenne”; mas é com a tradução em inglês e em francês do seu
terceiro (o que foi traduzido com o título A Cidadela Branca) e quarto romance
(agora publicado em português e cuja tradução inglesa do título original é The
Black Book) que Orhan Pamuk ganhou renome internacional, sendo
traduzido para quase todas as línguas. Por fim, com o último romance, cujo
título em inglês é My Name is Red, venceu o prestigiado “The International IMPAC
Dublin Literary Award”, o prémio literário mais elevado em termos financeiros no
espaço de língua inglesa, e cujas obras candidatas são propostas pelas
bibliotecas públicas e nacionais de todo o mundo. Orhan Pamuk é hoje, com grande
unanimidade, reconhecido como um autor fundamental da literatura contemporânea
e, pelas características específicas da sua obra, um dos mais sérios candidatos
ao Prémio Nobel.
A trama de Os Jardins da Memória é tão simples
que se expõe em poucas linhas: é a história de um advogado de meia-idade que,
de súbito e de forma inexplicável, constata que a sua mulher desapareceu e, com
ela, o seu meio-irmão, um cronista de um jornal diário, muito apreciado e
idolatrado, mas, ao mesmo tempo, polémico, e, por isso mesmo, resolve
deambular, de uma forma quase alucinada, por Istambul em busca deles (e esta
faceta de Os Jardins da Memória transmite-lhe outra característica
importante: poucos romances se afirmam de forma tão nítida como o “romance de uma
cidade”, como é este em relação à cidade de Istambul, dando dela uma imagem
sombria e gelada, cheia de ruas estreitas e misteriosas, ladeadas de decrépitos
prédios e lojas feéricas). A estrutura narrativa também, na sua aparência, é
muito simples: os capítulos vão alternando entre a narração da busca da
personagem principal e a reprodução das crónicas que o meio-irmão da sua mulher
foi publicando, durante várias décadas, num jornal famoso (o tal “Millyet” já
referido).
Saliente-se ainda, no respeitante aos seus aspectos
formais e estéticos, que Os Jardins da Memória assenta em
princípios que, para um leitor ocidental, poderão ser incómodos: é que, ao contrário do que sucede
nas mais importantes narrativas ocidentais, não existe neste romance uma regra
de contenção, de redução dos meios narrativos ao essencial para o desenvolvimento
da acção, mas, pelo contrário, um gosto pela justaposição de elementos, pelo
pormenor observado em minúcia, pelo encadeamento de histórias e narrativas
derivativas, pela introdução de personagens e situações na aparência
irrelevantes, num fluxo narrativo que parece incontrolável e avassalador. Quer
isto dizer, que a matriz e a referência estética deste longo romance está nas
narrativas tradicionais orientais (algumas delas, pouco conhecidas no Ocidente,
relacionadas com a literatura religiosa islâmica) e, muito em particular, em As
Mil e Uma Noites. Porém, não se julgue, tal como o leitor irá compreender
ao longo da sua leitura, que esta proliferação de elementos é gratuita,
estando, pelo contrário, em estreita articulação com a arquitectura do romance
e sempre relacionada, directa ou indirectamente, com o seu tema central.
Como em qualquer romance policial – percebe-se que,
de facto, é este, para Orhan Pamuk, o modelo fundamental para qualquer
estrutura narrativa -, a personagem principal, o advogado Galip, através das
suas deambulações ou através da análise das crónicas (reproduzidas no livro) do
meio-irmão da sua mulher, procura, como forma de compreender as razões que
levaram ao desaparecimento de ambos, tipificar a “identidade” como substrato de
motivações e comportamentos. Assim, como se rasgasse as camadas sucessivas de
um fruto até ao caroço, Os Jardins da Memória vai dissecando
a dicotomia Oriente/Ocidente, a base histórico-cultural da nação (saliente-se
que, no respeitante a este subtema, há duas crónicas em forma de parábola,
absolutamente geniais e inesquecíveis, uma, sobre os efeitos de um hipotético
desaparecimento das águas do Bósforo, outra, sobre um fabricante obsessivo de
manequins), a memória como depositária de um passado identificador ou como
recriação em parte fictícia, devido ao contacto com o Outro, a relação das
imagens que se tem sobre si (concebidas pelo próprio ou pelos outros), como
desdobramento ocultante, e a eventual realidade de cada um, o espaço físico (a
cidade, a casa) como elemento de suporte para a confirmação da identidade, o
rosto como mapa de legibilidade de um ser secreto, etc., etc.. De certo modo, o
que Galip vai percebendo, ao longo da sua peregrinação, é que no final
encontrará decerto o vazio e que, por isso mesmo, a sua própria
identificação reside apenas na leitura/interpretação do seu percurso até esse
fim e que, por conseguinte, só será inteligível pelos outros através da escrita
e da sua explicitação por “histórias” que seduzam os outros e lhes façam
compreender os meandros desse mesmo percurso.
A segunda parte de Os Jardins da Memória
trata, por isso, do acto de escrever e dos seus limites ou, por outras
palavras, dos seus efeitos sobre o leitor. De facto, se qualquer identificação
possível (“o que somos”) só transparece na produção narrativa (“o contar
histórias”) e apenas ganha sentido dando-a a conhecer (publicando-a), esta hipótese
acarreta duas consequências importantes: por um lado, cria uma relação, no fundamental,
ética, entre quem tem “voz” (isto é, tem capacidades verbais para “contar
histórias”) e quem não tem, e, por outro, sobre os efeitos da sedução de quem a
ouve (isto é, de quem lê as referidas “histórias”). Para expor toda a
complexidade do tema, o autor concebe um artifício habilmente conseguido: a
personagem principal, de um modo gradual, “substitui” o cronista meio-irmão da
mulher, começando não só a redigir crónicas em seu nome, mas também a escutar
os telefonemas intermináveis de um leitor que, em consequência de se ter seduzido
(saliente-se que Orhan Pamuk considera que o único leitor é aquele que está
inteiramente seduzido e, por conseguinte, de todo “transportado” para o que lê)
e acreditar, até ao limite do absurdo, no que é escrito nessas crónicas, vê
destruída, a todos os níveis, a sua vida. Quer isto dizer, que a “escrita”,
como consolação possível para uma existência vazia de identidade, é também um
perigoso jogo de ilusões (chamo aqui atenção para um dos vários “exercícios
polissémicos” que este romance está repleto, e que é muito difícil
de captar pelo leitor português, como é o facto do objecto físico de busca da
personagem principal – a sua mulher – se chamar “Ruya” que, em turco, quer
dizer “ilusão/sonho”) que pode fantasmagorizar por completo quem a redige e
quem a lê.
Por fim, duas últimas notas à edição portuguesa
desta obra. Pessoalmente, e por razões compreensíveis, sou contra a
substituição da tradução de títulos originais por outros que, de certo modo,
não correspondem à vontade primordial do autor. Espero, por isso, que haja
razões editoriais significativas que justifiquem alterar o título original (que
deveria ser O Livro Negro) para Os Jardins da Memória (à parte,
saliente-se, este título ser bem escolhido, uma vez é uma das imagens
recorrentes no romance e, de algum modo, caracterizar o seu tema central). Além
disso, e sem questionar a qualidade geral da tradução, creio que deveria ser um
princípio indiscutível a indicação da língua cuja versão foi utilizada para a
realização da tradução. Que se saiba, o tradutor não domina o turco (e isto não
põe em cheque a competência intelectual nem as suas qualidades de tradutor, uma
vez que é bem conhecida, e com provas indiscutíveis, a craveira, nestes
domínios, de Miguel Serras Pereira) e, por isso, creio que deveria vir referida
na edição a língua de partida utilizada. Tanto mais que, como é óbvio, não é
culpa da editora que não exista em Portugal formação em Línguas e Culturas
orientais capaz de transmitir as competências necessárias para traduzir uma obra
desta envergadura. Por isso mesmo, como já foi referido, e com toda a
sinceridade, deve ser reconhecido o esforço cultural da Ed. Presença em se
abalançar nesta edição, uma vez que mais vale ter esta obra no mercado, mesmo
traduzindo-a a partir de uma versão que não é a original, do que esperar,
paulatinamente, que haja a referida formação no nosso país para a realizar.
Autor: Orhan Pamuk
Tradução: Miguel Serras Pereira
Editor: Editorial Presença
450 págs., € 22,45