AS VOZES E OS LUGARES
É
natural que, quando se inicia a leitura de uma obra de um autor basco, se
considere inevitável que ela tenha de ter um de dois “ingredientes” possíveis: ou um
certo “folclorismo”, facilmente identificador de um determinado contexto cultural,
ou o “retrato” de uma realidade política e cultural, muito extremada e violenta,
que impõe a qualquer autor o alinhamento da sua obra por um dos “campos” em presença.
Ora, um dos méritos imediatos de Obabakoak, o romance agora traduzido
de Bernardo Atxaga, é que não existem nele boinas bascas e que, ao matraquear
das metralhadoras e ao troar das explosões dos atentados, se conseguiu sobrepor
a musica da imaginação e das palavras.
Conforme
se progride nas páginas de Obabakoak, uma excepcional originalidade
(desculpe-se a redundância) vai-se tornando evidente: é que é um romance
escrito para reconstruir (ia a escrever “salvar”, mas inibi-me, porque
pareceu-me um termo talvez excessivo e demasiado trágico) uma língua.
De facto, e parafraseando o nosso poeta, em poucos autores, como em
Bernardo Atxaga, é tão nítida a ideia de que a sua pátria é a sua língua -
neste caso, o euskara. A este facto, não é, decerto, alheia a dramática situação
sociolinguística desta língua: as suas características excepcionais fazem dela,
para utilizar uma expressão de uma das personagens de Obabakoak, uma verdadeira
“ilha” desolada no oceano das línguas modernas ou vivas, secularmente aviltada,
perseguida e marginalizada pelos centralismos castelhano e francês, com uma
literatura quase inexistente (o próprio autor afirma no romance que em três
anos leu toda a literatura escrita em euskara) e, ainda por cima, com um número
reduzido de falantes e que, pelo menos até há pouco tempo, tinha tendência para
diminuir.
Esta
tarefa, verdadeiramente épica, é, no entanto, realizada de uma forma nada explícita,
mas enraizada na própria estrutura da obra. Obabakoak é um autêntico
florilégio de “histórias”, como se o autor procurasse, numa única obra,
reconstruir todas as tramas e todos os enredos que uma literatura deve ter.
Mas
qual é o fio condutor dessas “histórias”? O de fazer uma verdadeira tipificação
de “lugares”. Só que aqui os “lugares” - num autor que assume que a sua pátria
é a sua língua - só tem sentido num contexto estritamente linguístico. Quer isto
dizer, que cada “lugar” é apenas um “tom” - ou uma “voz”: é este o sentido do
subtítulo em português. Por isso, estes “lugares” só existem no romance e quem
procurar a sua correspondência em lugares reais realiza uma tarefa redundante
para a compreensão da obra: procurar identificar Obaba com o País Basco ou com
a aldeia em que nasceu o escritor é uma tarefa plausível, porém, empobrecedora
do alcance global de Obabakoak.
Sem
sombra de dúvidas que o “lugar” mais importante do romance é Obaba. Mas não é o
único; entre outros, destacam-se Villamediana e Hamburgo. Obaba é o lugar/voz
onde confluem real e imaginário, onde irrompe a palavra. Por isso, a sua
descrição é “sintomática”, porque é o lugar central da transfiguração – afectiva
e fragmentada – da memória. Villamediana e Hamburgo, por outro lado, são os
“lugares” extremos para onde a palavra se dirige: Villamediana é o lugar/voz da
palavra que pretende apropriar-se do real, fazendo dele matéria literária – e é,
por isso, o lugar nostalgicamente abrangente do descritivo; Hamburgo (o único
termo, de todos estes, que, de forma curiosa, referencia um lugar real) é o
lugar/voz do puro imaginário, onde a palavra devaneia, querendo tornar-se real.
Percebe-se,
deste modo, por que é que duas das naturais preocupações de Obabakoak
– expressas por uma das suas personagens principais – sejam a intertextualidade
e o plágio (este aqui entendido, adequadamente, como uma forma literária
superior): é que, de certa forma, são eles que constituem os caminhos que unem
os “lugares”, a teia de relações que dá “alma” a uma literatura e, por esta, a
uma língua.
Porém,
esta leitura não transparece sem contradições em Obabakoak. Primeiro,
porque são muito mais os “lugares” encenados pelas diversas narrativas que se
encadeiam neste romance (a Alta Amazónia, o Nepal, etc.). Segundo, porque
existe em Bernardo Atxaga uma obsessiva vocação para o fragmentário, para a
palavra única que torna excedentária qualquer outra, para a obra que acaba com
qualquer obra futura.
Por
fim, gostaria de deixar claro que este romance não é um “jogo” verbal mais ou
menos descarnado. Pelo contrário, as “tonalidades” destes “lugares” são sempre
marcadas pelo humor e por uma intensa carga afectiva que envolvem todas as
situações e personagens e aparentam Obabakoak às obras de Bohumil
Hrabal. Por outro lado, o romance revela uma competente e imaginosa capacidade
de transformar em convictas as situações mais díspares, transmitindo um prazer
narrativo (bem correspondido na cuidada tradução portuguesa) que recorda o
poder encantatório de certo Calvino (o de, por exemplo, Se Uma Noite de Inverno, Um
Viajante…).
Parecem,
à primeira vista, estas afinidades pouco plausíveis… em particular, para uma
obra narrativa inicial. Porém, tenho a ousadia de afirmar que são raras, nos
tempos que correm, as primeiras obras que, como esta, conseguem corresponder em
resultados efectivos a tão ambiciosos objectivos iniciais: Obabakoak é, de um modo
inquestionável, uma obra apaixonante pela ambição que a gerou e pela dimensão e
o significado que consegue transmitir.
Publicado
no Público em 1992.
Título: Obabakoak
Autor:
Bernardo Atxaga
Tradução:
Egito Gonçalves
Editor:
Quetzal Editores
Ano:
1992
350
págs., esg.
Sem comentários:
Enviar um comentário