terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

BERNARDO ATXAGA 2


 
 
 
AS VOZES E OS LUGARES

 
É natural que, quando se inicia a leitura de uma obra de um autor basco, se considere inevitável que ela tenha de ter um de dois “ingredientes” possíveis: ou um certo “folclorismo”, facilmente identificador de um determinado contexto cultural, ou o “retrato” de uma realidade política e cultural, muito extremada e violenta, que impõe a qualquer autor o alinhamento da sua obra por um dos “campos” em presença. Ora, um dos méritos imediatos de Obabakoak, o romance agora traduzido de Bernardo Atxaga, é que não existem nele boinas bascas e que, ao matraquear das metralhadoras e ao troar das explosões dos atentados, se conseguiu sobrepor a musica da imaginação e das palavras.

 
Conforme se progride nas páginas de Obabakoak, uma excepcional originalidade (desculpe-se a redundância) vai-se tornando evidente: é que é um romance escrito para reconstruir (ia a escrever “salvar”, mas inibi-me, porque pareceu-me um termo talvez excessivo e demasiado trágico) uma língua. De facto, e parafraseando o nosso poeta, em poucos autores, como em Bernardo Atxaga, é tão nítida a ideia de que a sua pátria é a sua língua - neste caso, o euskara. A este facto, não é, decerto, alheia a dramática situação sociolinguística desta língua: as suas características excepcionais fazem dela, para utilizar uma expressão de uma das personagens de Obabakoak, uma verdadeira “ilha” desolada no oceano das línguas modernas ou vivas, secularmente aviltada, perseguida e marginalizada pelos centralismos castelhano e francês, com uma literatura quase inexistente (o próprio autor afirma no romance que em três anos leu toda a literatura escrita em euskara) e, ainda por cima, com um número reduzido de falantes e que, pelo menos até há pouco tempo, tinha tendência para diminuir.

Esta tarefa, verdadeiramente épica, é, no entanto, realizada de uma forma nada explícita, mas enraizada na própria estrutura da obra. Obabakoak é um autêntico florilégio de “histórias”, como se o autor procurasse, numa única obra, reconstruir todas as tramas e todos os enredos que uma literatura deve ter.

 
Mas qual é o fio condutor dessas “histórias”? O de fazer uma verdadeira tipificação de “lugares”. Só que aqui os “lugares” - num autor que assume que a sua pátria é a sua língua - só tem sentido num contexto estritamente linguístico. Quer isto dizer, que cada “lugar” é apenas um “tom” - ou uma “voz”: é este o sentido do subtítulo em português. Por isso, estes “lugares” só existem no romance e quem procurar a sua correspondência em lugares reais realiza uma tarefa redundante para a compreensão da obra: procurar identificar Obaba com o País Basco ou com a aldeia em que nasceu o escritor é uma tarefa plausível, porém, empobrecedora do alcance global de Obabakoak.

 
Sem sombra de dúvidas que o “lugar” mais importante do romance é Obaba. Mas não é o único; entre outros, destacam-se Villamediana e Hamburgo. Obaba é o lugar/voz onde confluem real e imaginário, onde irrompe a palavra. Por isso, a sua descrição é “sintomática”, porque é o lugar central da transfiguração – afectiva e fragmentada – da memória. Villamediana e Hamburgo, por outro lado, são os “lugares” extremos para onde a palavra se dirige: Villamediana é o lugar/voz da palavra que pretende apropriar-se do real, fazendo dele matéria literária – e é, por isso, o lugar nostalgicamente abrangente do descritivo; Hamburgo (o único termo, de todos estes, que, de forma curiosa, referencia um lugar real) é o lugar/voz do puro imaginário, onde a palavra devaneia, querendo tornar-se real.

 
Percebe-se, deste modo, por que é que duas das naturais preocupações de Obabakoak – expressas por uma das suas personagens principais – sejam a intertextualidade e o plágio (este aqui entendido, adequadamente, como uma forma literária superior): é que, de certa forma, são eles que constituem os caminhos que unem os “lugares”, a teia de relações que dá “alma” a uma literatura e, por esta, a uma língua.

 
Porém, esta leitura não transparece sem contradições em Obabakoak. Primeiro, porque são muito mais os “lugares” encenados pelas diversas narrativas que se encadeiam neste romance (a Alta Amazónia, o Nepal, etc.). Segundo, porque existe em Bernardo Atxaga uma obsessiva vocação para o fragmentário, para a palavra única que torna excedentária qualquer outra, para a obra que acaba com qualquer obra futura.

 
Por fim, gostaria de deixar claro que este romance não é um “jogo” verbal mais ou menos descarnado. Pelo contrário, as “tonalidades” destes “lugares” são sempre marcadas pelo humor e por uma intensa carga afectiva que envolvem todas as situações e personagens e aparentam Obabakoak às obras de Bohumil Hrabal. Por outro lado, o romance revela uma competente e imaginosa capacidade de transformar em convictas as situações mais díspares, transmitindo um prazer narrativo (bem correspondido na cuidada tradução portuguesa) que recorda o poder encantatório de certo Calvino (o de, por exemplo, Se Uma Noite de Inverno, Um Viajante…).

 
Parecem, à primeira vista, estas afinidades pouco plausíveis… em particular, para uma obra narrativa inicial. Porém, tenho a ousadia de afirmar que são raras, nos tempos que correm, as primeiras obras que, como esta, conseguem corresponder em resultados efectivos a tão ambiciosos objectivos iniciais: Obabakoak é, de um modo inquestionável, uma obra apaixonante pela ambição que a gerou e pela dimensão e o significado que consegue transmitir.


Publicado no Público em 1992.

 
(Foto do Autor de Foto Euskaraba)


Título: Obabakoak
Autor: Bernardo Atxaga
Tradução: Egito Gonçalves
Editor: Quetzal Editores
Ano: 1992
350 págs.,  esg.





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