UM PEQUENO
PRAZER
Imagine o
leitor que, depois de um serão bem passado num concerto, chega a casa e
constata que ela foi roubada por completo e que, desde o papel higiénico ao
esquentador ou desde os quadros da sala às mesas-de-cabeceira, nada ficou. É, pois,
de uma situação a tal ponto perturbante que arranca o conto largo que agora foi
editado no nosso país do actor, dramaturgo, guionista e memorialista inglês
Alan Bennett, intitulado Só Lhes Deixaram As Roupas Que Vestiam...
e que foi pela primeira vez publicado em 1996 na prestigiada “London Review of
Books”.
É sabido
que um dos filões mais poderosos e tradicionais da narrativa inglesa tem sido a
ficção humorística. Com altos e baixos, este género tem, ao longo dos séculos, contribuído
não só para escalpelizar a sociedade inglesa e reflectir sobre as chamadas
“limitações humanas”, mas também para renovar e revitalizar os modelos com que
a narrativa tem acompanhado a evolução dos tempos. Os exemplos são inúmeros,
mas basta só referir, creio, o caso de um autor como James Joyce que sempre
evidenciou o contributo da literatura humorística para a redefinição da sua
arte.
Esta obra
agora publicada de Alan Bennett é um brilhante exemplo das potencialidades
desta forma de expressão e, pela sua dimensão e contenção narrativa, bem
depressa somos inclinados a epitetá-la como uma autêntica “pérola” literária. O
casal Ransome, genuína classe média inglesa, vive, ao mesmo tempo, num certo
desafogo económico e numa ambiência de carência emocional e afectiva (sem filhos,
com uma vida sexual normalizada no mínimo, fruindo lado a lado os seus tempos
livres em universos incomunicáveis: a Sr.ª Ransome embrenhada nos “talk-shows”
televisivos, e o Sr. Ransome, com os seus auscultadores e a sua sofisticada
aparelhagem “hi-fi”, amortalhado no “seu” obsessivo Mozart). Quando roubam o
recheio da sua casa, não é tanto o possível desastre económico que os perturba
(ele está inteiramente assegurado), mas a perca provisória de uma “carapaça” de
objectos que lhes garante uma vida, em termos emocionais, pobre, mas sem
sobressaltos.
Por isso, o
perturbante da situação está na necessidade de recriar novos hábitos de
subsistência, refazendo circuitos e contactando novas pessoas. Quando saem dos
percursos estabelecidos durante anos e anos, os Ransome descobrem que a
sociedade inglesa se modificou imenso e que os comportamentos civilizacionais
dos seus vizinhos já não são os mesmos (nesse aspecto, deve ser bem salientada
a arguta capacidade de observação de Alan Bennett que, com meia dúzia de
personagens e situações, consegue bem assinalar essas mutações).
Porém, onde
se revela a invulgar arte de construir tramas de Alan Bennett é na forma como,
hábil e inesperadamente, resolve uma situação que tem algo de inverosímil (o
roubo do recheio integral da casa) e que, por isso mesmo, provoca uma constante
crispação no leitor. Além disso, consegue aproveitar essa mesma “resolução”
para evidenciar como, na actual sociedade, o mundo do espectáculo tem um
estatuto dominante ao ponto de condicionar a forma de gerir conflitos e
afectos: no fundo, a existência parece resumir-se à execução de um papel
determinado pelo tipo de “cenário” (ou “espaço”, para utilizar a gíria de uma
das personagens) envolvente.
Por fim,
deve referir-se que Só Lhes Deixaram As Roupas Que Vestiam... reveste a forma de
uma parábola, uma vez que, de um modo explícito, se procura retirar um sentido
edificante a esta história: o de que só se consegue converter em amadurecimento
e em formação caracterial qualquer tipo de catástrofe quando se adquiriu, ao
longo da vida, alguma disponibilidade afectiva ao exterior e à mudança.
Este conto
de Alan Bennett foi integrado numa colecção intitulada “Pequenos Prazeres”. E,
de facto, pelo pícaro das situações e pelo delicioso humor que perpassa por
todo o texto, é a melhor forma de o classificar.
Publicado
no Público em 2000.
(Foto do Autor de Getty Images)
Título: Só Lhes Deixaram As Roupas Que Vestiam...
Autor: Alan Bennett
Tradução: Maria João Delgado
Editor: Asa
Ano: 2000
80 págs., 1,50
€