A EXTINÇÃO DA UTOPIA
Um
dos exercícios mais interessantes que se pode efectuar com a
produção literária que se evidenciou durante esta última década é tentar
descobrir aquilo que conflui em ficções originárias de realidades
socioculturais bastante diversas. Porque se há alguma coisa que de imediato se
realça em O Amigo Distante de Christoph Hein, um autor de uma das mais
interessantes literaturas do Bloco de Leste (a da R.D.A.), é pressentir-se nesta
novela afinidades com o etiquetado “dirty realism” norte-americano, com a mais
recente ficção italiana e alemã e até com certas experiências
francesas (lembro-me, por exemplo, das obras de Andrea De Carlo,
de Botho Strauss e de Daniele Sallenave). E uma das mais legíveis dessas afinidades
está relacionada, inegavelmente, com a dimensão recuada e defensiva (para não
dizer de todo extinta) com que esses autores perspectivam o campo da “utopia” na civilização contemporânea.
Os
sinais cénicos de O Amigo Distante, que o situam num país socialista, têm um papel
relativamente secundário na sua trama ficcional. É certo que sabemos que o
enredo desta obra se passa em Berlim-Leste e em pequenas cidades da R.D.A., mas
há uma clara estratégia em Christoph Hein de eliminar qualquer acentuada localização
no modo de estar desta médica que resolve narrar, em jeito de balanço, após o enterro
de um vizinho com quem teve uma relação “amorosa”, o seu
quotidiano e os seus contactos, mais ou menos ocasionais, com colegas, familiares
e outros inquilinos do prédio onde habita.
O que
se evidencia na narrativa desta médica é o seu “olhar” que se quer demarcado dos
outros, digamos mesmo indiferente, alheado. Esse olhar pretende encarar a vida
como uma crónica que se lê e se procura esquecer. Os pequenos e grandes dramas
de cada um, as mesquinhices, os fantasmas e fixações privados, até a
movimentação circular do desejo, são entendidos como meras manifestações do
ciclo orgânico, um simples pulsar da pele. Por isso, o seu “amante” não passa
de um “amigo distante” de quem ela pouco ou nada quer saber e de quem, num jogo
tácito, apenas lhe interessa o suficiente afecto e atenção para suportar o
inevitável fluir do tempo.
Mas,
conforme a narradora desfia a sua memória, percebe-se que o seu olhar está ferido
pela rotura com uma amiga de infância, Katharina. Essa rotura de uma dedicação,
que se pretendia integral, revelou-lhe, de uma forma que se torna obsessiva, a
impossibilidade da absoluta comunicação e o irremediável bloqueio da paixão
fusional:
a utopia tornou-se-lhe um projecto inútil e desgastante e, por conseguinte, os outros aparecem-lhe como
especificidades perdidas e loucas, seres incómodos na sua irrazão radical.
Mas
a resignação a este sem sentido da existência provoca-lhe, como é inevitável,
um mal-estar, uma desadequação em relação à realidade,
que a leva a sentir-se como se estivesse no cenário
errado. Daí que a narradora
se sinta impelida a fotografar ininterruptamente as paisagens desérticas por onde
a sua vida se foi fazendo e refazendo, de forma a reconstruir uma “realidade”
de papel sensibilizado que se sobreponha à verdadeira
realidade e onde se possa sepultar como soberano Crusoé.
Será,
no entanto, a perfeita adequação estilística da escrita de Christoph Hein que
irá surpreender o leitor quando abrir este estranho e belo livro. A frase curta,
despojada de qualquer tipo de adjectivação, estabelece uma rigorosa coerência com
as anotações desencantadas com que, secamente, a narradora principal vai retratando
o seu universo privado.
Realce-se,
por fim, a excelente transcrição para português realizada por Ana Maria
Carvalho.
Publicado
no Expresso em 1987.
Título:
O Amigo Distante
Autor:
Christoph Hein
Tradução:
Ana Maria Carvalho
Editor:
Publicações Dom Quixote
Ano:
1987
179
págs., 12,59 €
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