A NARRATIVA VERTIGINOSA
É sabido que uma das tendências dominantes da
narrativa argentina contemporânea (basta recordar as obras, por exemplo, de
Macedonio Fernández, Ricardo Güiraldes, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares,
Silvina Ocampo, Roberto Arlt, Leopoldo Marechal, Julio Cortázar, Ernesto
Sabato, Manuel Puig e, de uma forma mais peculiar, de Ricardo Piglia) se
caracteriza pela constante imbricação da realidade com o fantástico, como se
estes dois pólos, por um sistema de vasos comunicantes, estivessem em constante
contaminação. É certo que esta tendência foi flutuando de matiz, conforme as
opções estéticas e a fundamentação teórica das vanguardas e correntes
literárias onde estas obras se integraram, mas nada disto obsta a esta
asserção. E mesmo quando certos autores se insurgiram contra esta tendência,
defendendo posições mais entroncadas no realismo (é o caso de Juan José Saer
que chega ao ponto de acusar os escritores sul-americanos de se enfeudarem a
uma determinada opção estética por necessidade de satisfazer a visão europeia
do que entende como “produção narrativa latino-americana”), semelhante recusa
só contribuiu para confirmar o seu vigor.
Ora, a importância da obra de César Aira advém,
antes do mais, por transmitir, de uma forma imprevista e original, um novo
fulgor a esta tendência.
César Aira muito pouco tem dado a conhecer do seu
percurso biográfico. Sabe-se apenas que nasceu em Coronel Pringles em 1949, que
vive, desde 1967, em Buenos Aires, que dá aulas de literatura nas Universidades
de Buenos Aires e de Rosario e que, em paralelo, se tem dedicado à tradução de
autores europeus, em particular franceses.
Creio que este desconhecimento não se deve apenas à
natural preocupação do autor em não desvendar nem publicitar o seu universo privado,
mas também à convicção de que os seus potenciais leitores se devem concentrar
na sua produção literária e no seu trabalho sobre a literatura como fenómeno
estético. De facto, César Aira, ao longo dos últimos vinte anos, tem efectuado
uma peculiar reflexão sobre o património literário sul-americano, revendo-o à
luz de novos critérios (cujos resultados se têm manifestado em polémicas
intervenções na comunicação social, em conferências e cursos de literatura, mas
também em ensaios publicados, dos quais se destaca os que realizou sobre Copi
e Alejandra
Pizarnik, mas, em especial, o seu Dicionário de Autores Latinoamericanos),
ao mesmo tempo que publicou uma profícua produção narrativa e
dramatúrgica: ao todo, desde que foi impressa a sua primeira narrativa em 1975,
intitulada Moreira, César Aira já editou mais de três dezenas de títulos.
Foi, contudo, com a sua segunda obra, Ema,
la cautiva, publicada já em 1981, que César Aira obteve o
reconhecimento nacional, em consequência da polémica que originou no seio da
crítica, entre entusiastas e detractores, entre os que destacavam a
imprevisibilidade da sua trama e a originalidade da reflexão que lhe servia de
força motriz e os que consideravam que a sua obra revelava um enfeudamento
excessivo à produção literária de Jorge Luis Borges e Roberto Arlt. A partir
desta altura, e a um ritmo intenso, César Aira publicou inúmeras novelas, onde
se evidenciam La luz argentina, Una novela china, La
liebre, La guerra de los gimnasios, Cómo me hice monja (cuja
tradução agora se publica), Los misterios de Rosario, El
Sueño, Las Curas milagrosas del Dr. Aria, El congreso de literatura,
Varamo
e Cumpleaños.
O conjunto mais expressivo da produção narrativa
de César Aira é constituído por pequenas novelas (o autor chama-lhes “novelitas”)
que classifica, com alguma ironia, como uma espécie de notas de pé-de-página de
uma enciclopédia que, como alvejado projecto totalizante, deverá “constituir” a
própria vida. Nessas pequenas novelas, César Aira procura evidenciar a dinâmica
interna e autónoma das estruturas narrativas e a sua potencialidade em induzir
“outras realidades” ou, por outras palavras, uma realidade própria. Partindo,
na sua maior parte, de circunstâncias menores (muitas vezes a trama das suas
novelas é pouco mais do que um “fait-divers”; por vezes, dá a ideia que, para César
Aira, o quotidiano existencial não passa de uma sucessão de “fait-divers”
entrecruzada de tédio…), o autor procura “seguir” o percurso que determinou o
estímulo para a produção da obra, sacrificando a essa necessidade interna
eventuais inquietações estilísticas (como já afirmou, as suas novelas exigem a
virtude da falta de estilo). Nesse sentido, as suas “novelitas” revelam uma
constante experimentação dos elementos narrativos (relação entre autor e narrador,
entre monólogo e diálogo, anotações derivativas, papel da ironia, pastiche de
outros universos literários, ritmo da acção, função dos elementos descritivos,
etc.), questionando o modo como intervêm na encenação de possíveis
verosimilhanças e utilizando-os de acordo com uma fluidez narrativa que procura
levar o leitor a aceitar a coerência específica da obra. Não admira, por isso,
que muitas das suas novelas contenham um momento abrupto da acção que transfigura
o seu contexto inicial e faz confluir, subitamente, real e fantástico, num
ambiente onde se diluem os contornos entre estes dois elementos.
Como Me Tornei Monja, a colectânea de três “novelitas” que agora se
publica (em 1998, por alturas da sua edição no país vizinho, foi considerado
pelo jornal “El País” como uma das dez obras mais importantes publicadas),
reflete de forma exemplar esta caracterização genérica.
De facto, pode afirmar-se que a estratégia
narrativa de César Aira nesta colectânea é, antes do mais, questionar as
convenções do leitor quando lê. Tal sucede, de forma mais exaustiva, na
“novelita” que dá título à obra, sem dúvida a mais complexa, onde, entre muitos
outros aspectos, para além da análise, em situação, da já referida relação
entre autor e narrador, se deslaça a conexão entre trama e título, se
questiona, através da identificação de género sexual, a relação entre as
personagens secundárias e o narrador, e se interroga de forma constante aquilo
que o leitor entende como real e fantasia, etc.
O objectivo, comum às outras duas “novelitas”,
intituladas “A Prova” e “O Choro”, é sempre o mesmo: abalar a convenção matriz
do leitor assente na procura de verosimilhança. Não através de um confronto
directo a essa convenção, mas, pelo contrário, através de um hábil intrincar de
trama e estilo, conseguir tornar o inverosímil aceite como verosímil. Como
“tour-de-force”, a comprovar a eficácia da estratégia, o autor coloca, no
desenrolar da trama, um incidente (no caso destas “novelitas”, sempre violento)
que transfigura o seu percurso, tornando-o imprevisível e dando uma sensação de
vertigem ao leitor. Paralelamente, a reforçar esta mesma sensação, manifesta-se também a forma como se expressa a corrente da consciência do(s)
narrador(es), num permanente deslizar entre delírio e vigília, que, ao questionar o
que entende como realidade, encaminha o leitor para uma permanente
incerteza em saber para que universos o conduzem.
Adaptado da introdução publicada na edição
portuguesa de Como Me Tornei Monja
em 2006.
Título: Como
Me Tornei Monja
Autor: César
Aira
Tradutor: José
Agostinho Baptista
Editor: Assírio
& Alvim
Ano: 2006
224 págs., 15,00 €