ATINGIR O CORAÇÃO DO MUNDO
Todos nós conhecemos histórias de suicidas. São gente de
carreira breve e obstinada. Mas, nos casos mais convictos, geralmente bem
sucedida. Quem os conheceu sabe que o seu olhar tem a dureza de quem descobriu qualquer
“certeza inatingível”, porque veio do lado invivível. Face a eles, pode usar-se
da retórica. Mas fica-se sempre inábil: mais vale esperar que regressem a uma outra
certeza mais tangível, mais cutânea, mais terrena e, desse modo, ponderem que,
para lá de tudo, é sempre melhor mudar de carreira.
Stig Dagerman tem fama de ser um escritor suicida. Criou,
por isso, uma auréola de radical santidade. E, por outro lado, contribuiu para generalizar
a convicção de que os suecos são um povo de suicidas. Mas é urgente assinalar
que esta fama é lamentavelmente redutora. Porque Stig Dagerman é só um dos mais
perturbantes e complexos escritores do pós-guerra.
O pequeno livro agora publicado, A Nossa Necessidade De Consolo É Impossível
De Satisfazer, parece, pelo título, confirmar essa imagem que se criou
do escritor. De imediato, o título retém: pressente-se que entramos numa zona
limite, de grau zero, onde a literatura ainda não é possível devido à
intensidade da dor. E que a escrita está aqui na sua função primeira, ancestral:
a de registar o grito.
Abre-se o livro e percebe-se que é oriundo das enevoadas
(e sempre presentes) paragens da morte. E, por isso mesmo, inconsolavelmente optimista.
Sabe-se da morte e ela enche de negrume tudo. Não há, de facto,
consolo possível. Mas vive-se, ama-se, escreve-se, luta-se. Porque sabe-se também
que, mesmo nas dependências que nos fazem ver o que não há, existem fulgores. E
que eles nada têm a ver com o tempo, esse monstruoso inimigo.
Por isso, descobre-se a beleza. Aquela que nos faz os
gestos certos, soberanos. Aquela que cria o logro do divino em nós. E
escreve-se: “Nem a vida é mensurável, nem
viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como
há-de sê-lo a vida humana - força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é
perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É
absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente
que o faz – mas preservando a sua liberdade.”
E descobre-se a liberdade. Mas tudo a afasta: em primeiro
lugar, a nossa consciência que nos desloca da serenidade da Natureza; em segundo
lugar, os outros que nos desconhecem e quantificam. Por isso, temos o imenso
consolo da luta. Por um lugar primordial na Criação. Por um destino inqualificável
entre destinos únicos e partilháveis. E escreve-se: ”E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo,
esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do
que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa,
então será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo. É este o meu
único consolo.”
Como fazer uma recensão a um livro destes? Não sei. Ou melhor,
sei: escrevê-la como se escreve uma missiva de solidariedade a quem, no meio
das poucas certezas, soçobrou numa incerteza derradeira. E transmitir-lhe de
uma forma tardia uma certeza inútil: a de que um encontro com páginas como estas
é ainda um consolo possível e necessário. Que, de facto, as suas “palavras tocaram o coração do mundo”.
Publicado no Expresso
em 1989.
Título: A Nossa
Necessidade De Consolo É Impossível De Satisfazer
Autor: Stig
Dagerman
Tradutor: Paula
Castro e José Daniel Ribeiro
Editor: Fenda Edições
Ano: 1989
28 págs., esg.
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