EM BUSCA DE UMA NOVA SANTIDADE
A primeira
impressão que se tem ao ler O Milionário Inocente de Stephen Vizinczey
é de que vem de um universo literário que não é o do presente. Ou que, pelo menos,
foi escrito a contra-corrente. De facto, não é muito comum na literatura contemporânea
encontrar-se um romance cujos princípios orientadores são fundamentalmente éticos
e onde a estratégia narrativa mais notória é a de denunciar, com algum humor, a
corrupção, as vilanias e a lógica (suicida) de processo das sociedades ocidentais,
como sucede neste romance. Depois da já tão propalada inutilidade estratégica
deste tipo de literatura, uma questão de imediato se coloca ao leitor: onde se
vai ainda buscar a motivação pessoal (ou a força moral) para escrever um romance
deste tipo nos dias de hoje?
O próprio
autor deu a resposta a esta pergunta em inúmeras entrevistas: durante sete
anos, teve um processo litigioso com um editor nova-iorquino que lhe pretendeu
usurpar os direitos autorais do seu primeiro romance, In Praise of Older Women
(quarenta edições e três milhões de exemplares em língua inglesa), obrigando-o
a confrontar-se com o sistema judicial americano. E a experiência foi-lhe tão
dolorosa e obcecante que Stephen Vizinczey resolveu transformar o ajuste de contas
numa narrativa que, iludindo as circunstâncias geradoras, permitisse perceber o
estado crítico da sociedade americana.
Esta
situação transparece no enredo de O Milionário Inocente. O romance é a
biografia do filho de um actor de cinema talentoso (mas incapaz de se impôr aos
produtores) que vive toda a sua infância entre a fome e a opulência, ao acaso
da carreira do pai, e que, por isso mesmo, começa a acalentar a ideia, mais ou
menos utópica, de se tornar milionário por uma via em que não necessite de espezinhar
ou maltratar ninguém. Com esse fim, vai dedicar-se, de forma obstinada, à
investigação, com o intuito de descobrir o local onde naufragou um brigue, em
que os colonizadores espanhóis do Perú, ao fugirem de San Martin, tinham embarcado
um fabuloso tesouro que procuravam trazer para Espanha. Só que a descoberta
desse tesouro, perto de uma das ilhas das Bahamas, vai iniciar um longo processo
de despossessão: espoliado pelo Estado, saqueado (e gravemente ferido) por um grupo
terrorista, roubado por um galerista burlão, vigarizado por advogados corruptos,
quando tenta, por via legal, reaver o seu tesouro, ele é, por fim, assassinado
pela Mafia, a soldo do marido (um grande empresário da indústria química) da mulher
por quem está apaixonado. No final, a personagem principal é um jovem estropiado,
física e moralmente, descrente das suas capacidades, acossado e disposto a
desistir de tudo em que apostou na vida.
O Milionário
Inocente é, assim, uma parábola pessimista sobre a desenfreada
ambição que impera nos tempos actuais e a animosidade de um sistema que nem
sequer admite a ingénua heroicidade de se ser “outsider” (no essencial, o que
se propõe, como única atitude eticamente aceitável, mas impossível, é que cada
um procure, tal como Mark Niven, a personagem principal, o seu tesouro no fundo
do mar). Daí, a convicção de Stephen Vizinczey de que as sociedades contemporâneas
se enfronharam nos caminhos da auto-destruição. O conluio dos interesses comerciais,
da burocracia e do banditismo organizado, está de todo alicerçado, provocando a
viciação do sistema judicial e o consequente desrespeito pelos direitos individuais,
o envenenamento do ambiente, a desagregação das relações pessoais: em nenhum lugar
já se encontra a serena alegria. Mesmo a fortaleza que era o prazer de descobrir
o corpo do outro, a sexualidade amorosa, foi minada pela ansiedade que aqueles
agentes dentro dela introduziram. Nem sobre o futuro dos filhos, que as mulheres
amadas trazem dentro do seu ventre, se pode ter a mínima esperança. Por isso, O
Milionário Inocente termina com uma frase, mais do que desencantada,
inexpressiva: “No momento em que este
livro está a ser impresso (...) ainda
não se sabe em que é que as crianças vão dar nem como o mundo vai acabar”.
A
aplicação à personagem principal de uma caracterização, quase sem falhas, de
heroicidade (o solitário contra todos) e este obsessivo pessimismo adulteraram,
no entanto, um dos objectivos explícitos (na própria epígrafe) de O
Milionário Inocente: o de, à maneira de Balzac e com certa ironia,
retratar a actual “comédia humana”. A ideia com que o leitor fica é que as
cores foram carregadas em excesso e que aquilo que se apresenta como realidade
enferma de um maniqueísmo irreal. Talvez o leitor esteja errado; mas, então, há,
sem dúvida, uma inábil estratégia que dissolveu a capacidade mimética do romance
e o transformou num “livro de aventuras” às avessas.
Mas o
que este romance permite também evidenciar é o reaparecimento ou a persistência
de certo tipo de postura do autor como personagem. Stephen Vizinczey é de
origem húngara, tendo sido expulso do seu país, em 1956, em consequência da
invasão soviética. Exilado no Canadá e, mais tarde, na Inglaterra, escreve, na
linha ilustre de Conrad e de Nabokov, na língua de expatriamento – o inglês, com
enorme sucesso. Escritor lento (dois romances e dois ensaios em vinte e cinco
anos de carreira literária), procura, contudo, na sua actividade, expôr-se, à
maneira gideana, como modelo ético, associando comportamento pessoal e criação
literária. Não só através de entrevistas, mas principalmente pelo jogo de ocultação/identificação
que estabelece com as personagens e as situações dos seus romances, como ainda com
a presença de narradores fortes, opinativos e intervenientes (o aspecto mais interessante
dos seus romances é a argúcia e a inteligência das posições do narrador), percebe-se
que o autor pretende protagonizar una nova forma de santidade, posição bem característica
da primeira metade deste século e bastante distinta daquela que hoje os seus confrades
assumem. De facto, perante um mundo tão “negro”, como aquele que Stephen Vizinczey
vislumbra existir, não fará mal nenhum, pelo contrário, aparecer uma nova hagiografia…
Publicado no Expresso em 1990.
Título: O Milionário Inocente
Autor: Stephen Vizinczey
Tradução: Rui Wahnon
Editor: Editorial Presença
Ano: 1990
417 págs., € 15,21