quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

STEPHEN VIZINCZEY

 
 
 
EM BUSCA DE UMA NOVA SANTIDADE
 
A primeira impressão que se tem ao ler O Milionário Inocente de Stephen Vizinczey é de que vem de um universo literário que não é o do presente. Ou que, pelo menos, foi escrito a contra-corrente. De facto, não é muito comum na literatura contemporânea encontrar-se um romance cujos princípios orientadores são fundamentalmente éticos e onde a estratégia narrativa mais notória é a de denunciar, com algum humor, a corrupção, as vilanias e a lógica (suicida) de processo das sociedades ocidentais, como sucede neste romance. Depois da já tão propalada inutilidade estratégica deste tipo de literatura, uma questão de imediato se coloca ao leitor: onde se vai ainda buscar a motivação pessoal (ou a força moral) para escrever um romance deste tipo nos dias de hoje?
 
O próprio autor deu a resposta a esta pergunta em inúmeras entrevistas: durante sete anos, teve um processo litigioso com um editor nova-iorquino que lhe pretendeu usurpar os direitos autorais do seu primeiro romance, In Praise of Older Women (quarenta edições e três milhões de exemplares em língua inglesa), obrigando-o a confrontar-se com o sistema judicial americano. E a experiência foi-lhe tão dolorosa e obcecante que Stephen Vizinczey resolveu transformar o ajuste de contas numa narrativa que, iludindo as circunstâncias geradoras, permitisse perceber o estado crítico da sociedade americana.
 
Esta situação transparece no enredo de O Milionário Inocente. O romance é a biografia do filho de um actor de cinema talentoso (mas incapaz de se impôr aos produtores) que vive toda a sua infância entre a fome e a opulência, ao acaso da carreira do pai, e que, por isso mesmo, começa a acalentar a ideia, mais ou menos utópica, de se tornar milionário por uma via em que não necessite de espezinhar ou maltratar ninguém. Com esse fim, vai dedicar-se, de forma obstinada, à investigação, com o intuito de descobrir o local onde naufragou um brigue, em que os colonizadores espanhóis do Perú, ao fugirem de San Martin, tinham embarcado um fabuloso tesouro que procuravam trazer para Espanha. Só que a descoberta desse tesouro, perto de uma das ilhas das Bahamas, vai iniciar um longo processo de despossessão: espoliado pelo Estado, saqueado (e gravemente ferido) por um grupo terrorista, roubado por um galerista burlão, vigarizado por advogados corruptos, quando tenta, por via legal, reaver o seu tesouro, ele é, por fim, assassinado pela Mafia, a soldo do marido (um grande empresário da indústria química) da mulher por quem está apaixonado. No final, a personagem principal é um jovem estropiado, física e moralmente, descrente das suas capacidades, acossado e disposto a desistir de tudo em que apostou na vida.
 
O Milionário Inocente é, assim, uma parábola pessimista sobre a desenfreada ambição que impera nos tempos actuais e a animosidade de um sistema que nem sequer admite a ingénua heroicidade de se ser “outsider” (no essencial, o que se propõe, como única atitude eticamente aceitável, mas impossível, é que cada um procure, tal como Mark Niven, a personagem principal, o seu tesouro no fundo do mar). Daí, a convicção de Stephen Vizinczey de que as sociedades contemporâneas se enfronharam nos caminhos da auto-destruição. O conluio dos interesses comerciais, da burocracia e do banditismo organizado, está de todo alicerçado, provocando a viciação do sistema judicial e o consequente desrespeito pelos direitos individuais, o envenenamento do ambiente, a desagregação das relações pessoais: em nenhum lugar já se encontra a serena alegria. Mesmo a fortaleza que era o prazer de descobrir o corpo do outro, a sexualidade amorosa, foi minada pela ansiedade que aqueles agentes dentro dela introduziram. Nem sobre o futuro dos filhos, que as mulheres amadas trazem dentro do seu ventre, se pode ter a mínima esperança. Por isso, O Milionário Inocente termina com uma frase, mais do que desencantada, inexpressiva: “No momento em que este livro está a ser impresso (...) ainda não se sabe em que é que as crianças vão dar nem como o mundo vai acabar”.
 
A aplicação à personagem principal de uma caracterização, quase sem falhas, de heroicidade (o solitário contra todos) e este obsessivo pessimismo adulteraram, no entanto, um dos objectivos explícitos (na própria epígrafe) de O Milionário Inocente: o de, à maneira de Balzac e com certa ironia, retratar a actual “comédia humana”. A ideia com que o leitor fica é que as cores foram carregadas em excesso e que aquilo que se apresenta como realidade enferma de um maniqueísmo irreal. Talvez o leitor esteja errado; mas, então, há, sem dúvida, uma inábil estratégia que dissolveu a capacidade mimética do romance e o transformou num “livro de aventuras” às avessas.
 
Mas o que este romance permite também evidenciar é o reaparecimento ou a persistência de certo tipo de postura do autor como personagem. Stephen Vizinczey é de origem húngara, tendo sido expulso do seu país, em 1956, em consequência da invasão soviética. Exilado no Canadá e, mais tarde, na Inglaterra, escreve, na linha ilustre de Conrad e de Nabokov, na língua de expatriamento – o inglês, com enorme sucesso. Escritor lento (dois romances e dois ensaios em vinte e cinco anos de carreira literária), procura, contudo, na sua actividade, expôr-se, à maneira gideana, como modelo ético, associando comportamento pessoal e criação literária. Não só através de entrevistas, mas principalmente pelo jogo de ocultação/identificação que estabelece com as personagens e as situações dos seus romances, como ainda com a presença de narradores fortes, opinativos e intervenientes (o aspecto mais interessante dos seus romances é a argúcia e a inteligência das posições do narrador), percebe-se que o autor pretende protagonizar una nova forma de santidade, posição bem característica da primeira metade deste século e bastante distinta daquela que hoje os seus confrades assumem. De facto, perante um mundo tão “negro”, como aquele que Stephen Vizinczey vislumbra existir, não fará mal nenhum, pelo contrário, aparecer uma nova hagiografia…
 
Publicado no Expresso em 1990.
 
 
Título: O Milionário Inocente
Autor: Stephen Vizinczey
Tradução: Rui Wahnon
Editor: Editorial Presença
Ano: 1990
417 págs., € 15,21
 
 
 



quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

MILAN KUNDERA

 
 
 
A ARTE DA SEDUÇÃO
 
Certos escritores impressionam, de imediato, pela panóplia dos seus artifícios de sedução. Parecem certas mulheres cujo “charme” ostensivo só serve para encobrir o seu carácter superficial e desinteressante.
 
Não considero, muito pelo contrário, Milan Kundera um escritor sem interesse. Mas não há duvida que é ofuscante o seu hábil manejo da capacidade de seduzir - e esta é, certamente, uma das razões da sua popularidade.
 
Poucos escritores contemporâneos existirão que consigam atingir os registos de humor e ironia deste autor. Desde a malícia suave e subterrânea até a truculência que transforma numa grotesca caricatura alguns dos mitos e (porque não dizê-lo) preconceitos que, até há tão pouco tempo, adulavam as nossas cabeças bem convictas das inevitabilidades históricas, tudo isto atravessa a ficção de Milan Kundera.
 
Depois, percebe-se porque é que este autor tanto se preocupa com a densidade e a ligeireza dos corpos... e dos estilos: repare-se, por exemplo, nos eficazes efeitos de distanciação resultantes da utilização de uma aparente superficialidade com que trata assuntos de uma envolvente pungência para os nossos destinos pessoais e colectivos.
 
Tudo isto, ao serviço de identificáveis constantes temáticas (as gastas e sempre renovadas jornadas em que se buscam os momentos perfeitos do amor e da comunhão com os outros), faz com que cada leitor se veja impelido a desvendar analogias entre as situações romanescas e os seus modos de estar e de sentir, num jogo que lhe propicia uma reflexão sobre os seus próprios percursos, e lhe dá a ilusão de “necessitar” de ter sempre à mão as obras de Milan Kundera como se fossem manuais de comportamento e de bem-estar.
 
Tanto mais que o autor sabe sempre, aproveitando os encontros e desencontros que as suas obras vão espelhando, contrapôr os devidos “raisonnements” que, assente numa dialética de categorias, conduzem o leitor para os objectivos demonstrativos do próprio texto, num modelo “fechado” de escrita que seria de facto insustentável se não fosse a já referida capacidade de sedução estilística de Milan Kundera.
 
Em O Livro dos Amores Risíveis, a colectânea de pequenas novelas que em breve será editada em Portugal, estão bem caracterizados todos estes aspectos da ficção de Milan Kundera.
 
Tal como está expresso no título, todas estas “estórias” giram em torno da oculta face ridícula dos comportamentos amorosos, desse eterno lado grotesco dos nossos empolgamentos e exaltações. O Livro dos Amores Risíveis é um verdadeiro catálogo da pantomima dos olhares enlevados.
 
Mas, por outro lado, a relação amorosa é aqui encarada como um jogo complexo de imagens e contra-imagens que entre si procuram a perfeição da simetria. Mas essa retórica é, contudo, constantemente minada por situações de desequilíbrio e inadequação de imagens (repare-se em O Jogo do Auto-Stop, talvez a mais notável novela desta colectânea), por logros narcísicos que transformam, segundo os contextos, a legibilidade do desejo do outro (O Colóquio), ou por motivações bem distintas que ocasional e fugazmente se encontram (Que os Velhos Mortos Cedam o Lugar aos Novos Mortos).
 
No fundo, a verdadeira dimensão risível do jogo amoroso vem do desequilíbrio entre a fragilidade da permanente demanda (que, como se vê em A Maça de Oiro do Eterno Desejo, pode tornar-se num fim em si) e a desmesura daquilo que nela é investido, arrastando destinos e projectos, alimentando a vida com o adubo das frustrações.
 
Note-se, por fim, que, sem sentido pejorativo, estas novelas dão muitas vezes a ideia de terem servido a Milan Kundera para afinar soluções ficcionistas, tanto ao nível temático como da estrutura narrativa. que mais tarde o autor vai desenvolver nas obras romanescas posteriores. No entanto, é inegável que algumas destas “estórlas” são demonstrativas da admirável capacidade criativa deste escritor (lembremos de novo O Jogo do Auto-Stop ou Edouard e Deus), ao mesmo tempo que têm o mérito de revelar, em concisão e numa perspectiva inovadora, algumas das suas permanente e incisivas interrogações.
 
Publicado na revista Ler em 1988.
 
 
Título: O Livro dos Amores Risíveis
Autor: Milan Kundera
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
197 págs., € 9,95