quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

MILAN KUNDERA

 
 
 
A ARTE DA SEDUÇÃO
 
Certos escritores impressionam, de imediato, pela panóplia dos seus artifícios de sedução. Parecem certas mulheres cujo “charme” ostensivo só serve para encobrir o seu carácter superficial e desinteressante.
 
Não considero, muito pelo contrário, Milan Kundera um escritor sem interesse. Mas não há duvida que é ofuscante o seu hábil manejo da capacidade de seduzir - e esta é, certamente, uma das razões da sua popularidade.
 
Poucos escritores contemporâneos existirão que consigam atingir os registos de humor e ironia deste autor. Desde a malícia suave e subterrânea até a truculência que transforma numa grotesca caricatura alguns dos mitos e (porque não dizê-lo) preconceitos que, até há tão pouco tempo, adulavam as nossas cabeças bem convictas das inevitabilidades históricas, tudo isto atravessa a ficção de Milan Kundera.
 
Depois, percebe-se porque é que este autor tanto se preocupa com a densidade e a ligeireza dos corpos... e dos estilos: repare-se, por exemplo, nos eficazes efeitos de distanciação resultantes da utilização de uma aparente superficialidade com que trata assuntos de uma envolvente pungência para os nossos destinos pessoais e colectivos.
 
Tudo isto, ao serviço de identificáveis constantes temáticas (as gastas e sempre renovadas jornadas em que se buscam os momentos perfeitos do amor e da comunhão com os outros), faz com que cada leitor se veja impelido a desvendar analogias entre as situações romanescas e os seus modos de estar e de sentir, num jogo que lhe propicia uma reflexão sobre os seus próprios percursos, e lhe dá a ilusão de “necessitar” de ter sempre à mão as obras de Milan Kundera como se fossem manuais de comportamento e de bem-estar.
 
Tanto mais que o autor sabe sempre, aproveitando os encontros e desencontros que as suas obras vão espelhando, contrapôr os devidos “raisonnements” que, assente numa dialética de categorias, conduzem o leitor para os objectivos demonstrativos do próprio texto, num modelo “fechado” de escrita que seria de facto insustentável se não fosse a já referida capacidade de sedução estilística de Milan Kundera.
 
Em O Livro dos Amores Risíveis, a colectânea de pequenas novelas que em breve será editada em Portugal, estão bem caracterizados todos estes aspectos da ficção de Milan Kundera.
 
Tal como está expresso no título, todas estas “estórias” giram em torno da oculta face ridícula dos comportamentos amorosos, desse eterno lado grotesco dos nossos empolgamentos e exaltações. O Livro dos Amores Risíveis é um verdadeiro catálogo da pantomima dos olhares enlevados.
 
Mas, por outro lado, a relação amorosa é aqui encarada como um jogo complexo de imagens e contra-imagens que entre si procuram a perfeição da simetria. Mas essa retórica é, contudo, constantemente minada por situações de desequilíbrio e inadequação de imagens (repare-se em O Jogo do Auto-Stop, talvez a mais notável novela desta colectânea), por logros narcísicos que transformam, segundo os contextos, a legibilidade do desejo do outro (O Colóquio), ou por motivações bem distintas que ocasional e fugazmente se encontram (Que os Velhos Mortos Cedam o Lugar aos Novos Mortos).
 
No fundo, a verdadeira dimensão risível do jogo amoroso vem do desequilíbrio entre a fragilidade da permanente demanda (que, como se vê em A Maça de Oiro do Eterno Desejo, pode tornar-se num fim em si) e a desmesura daquilo que nela é investido, arrastando destinos e projectos, alimentando a vida com o adubo das frustrações.
 
Note-se, por fim, que, sem sentido pejorativo, estas novelas dão muitas vezes a ideia de terem servido a Milan Kundera para afinar soluções ficcionistas, tanto ao nível temático como da estrutura narrativa. que mais tarde o autor vai desenvolver nas obras romanescas posteriores. No entanto, é inegável que algumas destas “estórlas” são demonstrativas da admirável capacidade criativa deste escritor (lembremos de novo O Jogo do Auto-Stop ou Edouard e Deus), ao mesmo tempo que têm o mérito de revelar, em concisão e numa perspectiva inovadora, algumas das suas permanente e incisivas interrogações.
 
Publicado na revista Ler em 1988.
 
 
Título: O Livro dos Amores Risíveis
Autor: Milan Kundera
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
197 págs., € 9,95
 
 



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