A ARTE
DA SEDUÇÃO
Certos
escritores impressionam, de imediato, pela panóplia dos seus artifícios de sedução.
Parecem certas mulheres cujo “charme” ostensivo só serve para encobrir o seu
carácter superficial e desinteressante.
Não
considero, muito pelo contrário, Milan Kundera um escritor sem interesse. Mas não
há duvida que é ofuscante o seu hábil manejo da capacidade de seduzir - e esta é,
certamente, uma das razões da sua popularidade.
Poucos
escritores contemporâneos existirão que consigam atingir os registos de humor e
ironia deste autor. Desde a malícia suave e subterrânea até a truculência que
transforma numa grotesca caricatura alguns dos mitos e (porque não dizê-lo)
preconceitos que, até há tão pouco tempo, adulavam as nossas cabeças bem
convictas das inevitabilidades históricas, tudo isto atravessa a ficção de
Milan Kundera.
Depois,
percebe-se porque é que este autor tanto se preocupa com a densidade e a
ligeireza dos corpos... e dos estilos: repare-se, por exemplo, nos eficazes
efeitos de distanciação resultantes da utilização de uma aparente superficialidade
com que trata assuntos de uma envolvente pungência para os nossos destinos
pessoais e colectivos.
Tudo
isto, ao serviço de identificáveis constantes temáticas (as gastas e sempre
renovadas jornadas em que se buscam os momentos perfeitos do amor e da comunhão
com os outros), faz com que cada leitor se veja impelido a desvendar analogias
entre as situações romanescas e os seus modos de estar e de sentir, num jogo
que lhe propicia uma reflexão sobre os seus próprios percursos, e lhe dá a ilusão
de “necessitar” de ter sempre à mão as obras de Milan Kundera como se fossem manuais
de comportamento e de bem-estar.
Tanto
mais que o autor sabe sempre, aproveitando os encontros e desencontros que as
suas obras vão espelhando, contrapôr os devidos “raisonnements” que, assente
numa dialética de categorias, conduzem o leitor para os objectivos demonstrativos
do próprio texto, num modelo “fechado” de escrita que seria de facto insustentável
se não fosse a já referida capacidade de sedução estilística de Milan Kundera.
Em O
Livro dos Amores Risíveis, a colectânea de pequenas novelas que em breve
será editada em Portugal, estão bem caracterizados todos estes aspectos da ficção
de Milan Kundera.
Tal como
está expresso no título, todas estas “estórias” giram em torno da oculta face
ridícula dos comportamentos amorosos, desse eterno lado grotesco dos nossos empolgamentos
e exaltações. O Livro dos Amores Risíveis é um verdadeiro catálogo da
pantomima dos olhares enlevados.
Mas,
por outro lado, a relação amorosa é aqui encarada como um jogo complexo de
imagens e contra-imagens que entre si procuram a perfeição da simetria. Mas
essa retórica é, contudo, constantemente minada por situações de desequilíbrio
e inadequação de imagens (repare-se em O
Jogo do Auto-Stop, talvez a mais notável novela desta colectânea), por logros
narcísicos que transformam, segundo os contextos, a legibilidade do desejo do
outro (O Colóquio), ou por motivações
bem distintas que ocasional e fugazmente se encontram (Que os Velhos Mortos Cedam o Lugar aos Novos Mortos).
No
fundo, a verdadeira dimensão risível do jogo amoroso vem do desequilíbrio entre
a fragilidade da permanente demanda (que, como se vê em A Maça de Oiro do Eterno Desejo, pode tornar-se num fim em si) e a
desmesura daquilo que nela é investido, arrastando destinos e projectos,
alimentando a vida com o adubo das frustrações.
Note-se,
por fim, que, sem sentido pejorativo, estas novelas dão muitas vezes a ideia de
terem servido a Milan Kundera para afinar soluções ficcionistas, tanto ao nível
temático como da estrutura narrativa. que mais tarde o autor vai desenvolver
nas obras romanescas posteriores. No entanto, é inegável que algumas destas “estórlas”
são demonstrativas da admirável capacidade criativa deste escritor (lembremos de
novo O Jogo do Auto-Stop ou Edouard e Deus), ao mesmo tempo que têm
o mérito de revelar, em concisão e numa perspectiva inovadora, algumas das suas
permanente e incisivas interrogações.
Publicado na revista Ler em 1988.
Título: O Livro dos Amores Risíveis
Autor: Milan Kundera
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
197 págs., € 9,95
Sem comentários:
Enviar um comentário