A VIDA COMO RISCO
Durante
muitos anos, acompanhou a pasta dos meus escritos uma grande fotografia de
Hemingway, tirada pouco antes de se suicidar, em que ele procura forçar um
enorme gato, que tem ao colo, a encarar a objectiva. Não sei porquê, mas aquela
fotografia servia para me apaziguar a descrença numa actividade, que tantas
vezes nos parece absurda, como é a de escrever.
Com as
dificuldades que este mundo cria para cultivarmos as fidelidades, a fotografia,
de cantos quebrados, lá foi parar ao fundo das arcas encoiradas onde guardamos
os papéis. Mas ainda hoje, quando a descubro, estaco nas minhas buscas, impressionado
com aqueles olhos envelhecidos de tanto ver e crer.
O inédito
agora publicado em português, uma vasta reportagem encomendada pela “Life”
sobre a temporada tauromáquica de 1959, que dois míticos matadores espanhóis, Luis
Miguel Dominguin e António Ordoñez, realizaram “em mano a mano” por toda a Espanha,
transmite-nos incólume a sedução da personalidade contraditória de Hemingway,
que sempre assumiu que a construção caracterial se fazia no confronto com o
risco, ocultando todas as suas fragilidades com o vigor da afirmação nos momentos
de excepção (daí o natural fascínio de Hemingway pelos touros: lembremo-nos de Fiesta
ou de Death in the Afternoon).
E
mesmo que o leitor (como é o meu caso) não se sinta de todo motivado pela tourada,
não perde, contudo, o seu tempo a ler este Verão Perigoso. Porque sendo um
texto de circunstância, muito vasto e que o autor não reviu completamente (o
texto, que constitui esta edição, é resultante de uma selecção feita pelo amigo,
e biógrafo, de Hemingway, A. E. Hotchner), e, por conseguinte, cheio de “irregularidades”,
o leitor encontra sempre, numa imprevisível curva da narrativa, a marca da genialidade
estilística deste autor.
E
convirá salientar que, para lá de todos os méritos diversos deste escritor, o
seu lugar na literatura contemporânea é situado fundamentalmente por um estilo
que, a partir do final dos anos vinte, estabelece um radical corte nas técnicas
de escrita. As características inequívocas da actual ficção americana, tão
determinadas pelo behaviourismo, são, em grande parte, fundadas pelo estilo de
Hemingway.
Verão Perigoso está
marcado pelo código de uma “salubridade” de relações com que, de forma bem
ilusória, Hemingway procurou sempre trilhar a sua vida e a sua escrita: a
fraternidade masculina, feita de admiração e de uma jovial cumplicidade (é vivamente
interessante seguir os registos da amizade entre duas personalidades tão
diferentes, mas regendo-se por princípios afins, como as do autor e de Ordoñez),
uma exaltação de viver, provocada pela permanente consciência da morte, a exigência
de uma forma de estar que se quer em consonância rigorosa com o que se pensa da
vida.
Depois,
os touros de morte são apenas uma metáfora real. Porque, em todo o cenário de Verão
Perigoso, vão aparecer, como reminiscências intensas, as paisagens, as
cidades, a paixão vibrátil do povo espanhol: é a temporada verdadeiramente
perigosa da Guerra Civil Espanhola que Hemingway vai descobrindo na sua viagem,
de corrida em corrida, atrás dos “matadores”.
Por
fim, saliente-se a tradução escorreita de Eduardo Saló, o prefácio de James A. Michener
e o glossário final de termos tauromáquicos que permite, a qualquer leitor menos
familiarizado com a ambiência ritual dos “touros”, integrar-se com facilidade
no texto.
Publicado no Expresso em 1987.
Título: Verão Perigoso
Autor: Ernest Hemingway
Tradutor: Eduardo Saló
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1987
246 págs., € 13,30
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