NO “LIMES” HUMANO
Uma das noções
mais recorrentes sobre a narrativa australiana é a de que se constitui como uma espécie
de “literatura de fronteira”. Esta noção deriva não tanto do facto desta
literatura ser oriunda de um dos possíveis “limes” da civilização ocidental
(será que ainda existem “limes” da civilização ocidental?), mas de uma certa
imagem de “pioneirismo” que se encontra associada a alguns romances mais
significativos de Patrick White (1912-1990) - o único escritor australiano a
ganhar, em 1960, o Prémio Nobel, e que é, com Christina Stead (1902-1983) e
poucos mais, uma das figuras tutelares desta literatura. Porém, é necessário
reconhecer que esta imagem foi reforçada por uma certa visão “exterior” do
continente australiano que o encara como um território de horizontes a perder
de vista, despovoado, de rala vegetação, retalhado por gigantescas fazendas de
criação de gado. E onde, principalmente, ressoa uma sufocante solidão motivada
por uma esmagadora presença da Natureza.
Se a
problemática das relações entre Homem e Natureza ficou estabelecida pela
produção literária da geração “heróica” de Patrick White e Christina Stead como
elemento dominante da narrativa australiana, foram as obras de gerações posteriores,
em particular aquelas que se afirmaram entre as décadas de setenta a noventa do
século passado, e cujas figuras mais proeminentes são Elizabeth Jolley, David
Malouf, Thomas Keneally, Frank Moorhouse, Murray Bail, Helen Garner, Peter
Carey, Kate Grenville e Tim Winton (ordenados aqui pelo ano de nascimento), que
lhe deram uma significativa irradiação internacional, exprimindo e definindo,
através de um aprofundamento das perspectivas desta problemática e da
utilização de métodos narrativos diversificados, um universo peculiar no quadro
das literaturas de expressão inglesa.
No contexto da
produção destes escritores tem merecido um destaque invulgar, pela
singularidade com que aborda esta problemática das relações do homem com a
Natureza, mas também pelo seu cuidado estilístico e pela subtil erudição com que
sustenta a sua arquitectura narrativa, a obra de David Malouf, o autor de quem
agora se apresenta o romance Uma Vida Imaginária.
Filho de um libanês
cristão e de uma inglesa judia, David Malouf nasceu em 1934 em Brisbane,
Queensland, onde passou a infância e a adolescência, tendo-se formado na
universidade local. Depois de leccionar língua inglesa, por alguns anos, nesta
universidade, decidiu, em 1958, fixar-se em Inglaterra, onde viveu durante dez
anos, dando também aulas (em Londres e em Birkenhead). Regressou depois à
Austrália, para dar aulas na Universidade de Sidney; até que, já em 1978, opta
por abandonar o ensino e dedicar-se a tempo inteiro à actividade de escritor e retorna
à Europa para ir residir na Toscânia, em Itália. Porém , em 1985,
decide passar a viver definitivamente no seu Queensland natal, de onde, até
hoje, só voltou a sair por motivos esporádicos. Saliente-se que este deambular permanente
entre a Austrália e a Europa tem, em grande parte, subjacente o fascínio de
David Malouf pela civilização europeia, espelhado de diversas formas na sua
obra, e que este considera que foi “traduzida” (e não “transplantada”) com
alguma ambivalência para o contexto geográfico e social muito distinto da
Austrália.
Curiosamente, Uma
Vida Imaginária é o único romance de David Malouf que não se passa em ambiente
australiano; e, contudo, pressente-se, tanto na problemática como no modo de a
formular, que esta obra integra de uma forma exemplar o citado “mainstream” da
narrativa australiana. De facto, através do diário ficcionado dos últimos
tempos de vida do poeta romano Ovídeo (quando este se encontra desterrado, por
deliberação imperial, em território dos Citas, junto do Mar Negro, nos limites
do Império) e, em particular, através da descrição do seu relacionamento com a criança-lobo
que o próprio poeta descobriu e do seu esforço para a integrar na comunidade
humana, o autor procura reflectir sobre um conjunto de questões que considera
nucleares para a compreensão da especificidade do Homem no quadro das relações
de “fronteira” entre civilização e Natureza (estas questões têm um peso tão
obsessivo para David Malouf que o seu romance Remembering Babylon, redigido
muitos anos depois, retoma-as de forma significativa): a relação entre “lei” e barbárie,
entre ter “fala” e não ter (o exilado é alguém a quem foi “roubada” a língua),
entre poder político e identidade individual (ou, por outras palavras, entre
História e indivíduo), entre homem e Deus (será a entidade divina o Outro que
prevemos em nós?) entre Ser e Natureza, etc., etc.
Esta trama serve
também para David Malouf compreender, por uma descodificação de intuições e de
sinais, como o “olhar” do poeta tem enormes similitudes com o da
criança-selvagem e o do bárbaro, em especial na forma como encara a Natureza e
a “reconstrói” em linguagem ritualizada. Nesse sentido, o próprio trabalho
poético de Ovídeo permite-lhe demonstrar que o objectivo último da poesia é a
diluição da fronteira entre homem e Natureza (as “metamorfoses”), deixando uma
“marca”, mais imaterial do que material, que se consubstancia na própria
natureza magmática do tempo.
Publicado em
2006 como Introdução a Uma Vida
Imaginária de David Malouf.
Autor: David Malouf
Tradutor: José Agostinho Baptista
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2006
144 págs, 11,70 €
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