terça-feira, 27 de março de 2012

FRANÇOIS MAURIAC


CUMPLICIDADES



Quando, há vinte anos, François Mauriac morreu, a imagem, que o grande público dele retivera, era a do polemista e a do “clerc” que, sem nunca abandonar os seus princípios católicos, se tornara varias vezes bastante incómodo tanto para os grupos sociais que se proclamavam como os “verdadeiros paladinos” desses princípios, como para a “esquerda” que, não poucas vezes, caíra na tentação de ver nele um dos porta-vozes das suas posições. Mas, enquanto romancista, Mauriac era, desde a II Guerra Mundial e apesar do Nobel concedido em 1952, considerado como autor de uma obra de temática historicamente muito conotada e, por isso, já “ultrapassada”: a crítica “existencialista” parecia, de facto, ter demonstrado de forma exaustiva a fragilidade dos fundamentos estéticos, éticos e metafísicos da sua obra (que Sartre, em Situations I, tinha “arrumado” com um categórico juízo crítico: “Dieu n’est pas un artiste, M. François Mauriac non plus”).

No entanto, Mauriac tinha publicado, na década de vinte, vários romances, entre os quais este Teresa Desqueyroux, que não só obtiveram um enorme sucesso, como foram muito bem recebidos pelos seus “pares” (André Gide, por exemplo), garantindo-lhe, ainda relativamente novo, um lugar na Academia. Hoje, após se terem dissipado os fumos da borrasca crítica, são considerados como alguns dos mais significativos da literatura francesa do período entre as duas Guerras, adquirindo um insofismável estatuto de “clássicos”, e reveladores, paralelamente, de uma inegável modernidade estética.

A forma como é construída a história dramática de uma mulher que tenta envenenar o marido — que constitui a trama nuclear de Teresa Desqueyroux – é bem sintomática das preocupações de inovação estética de Mauriac: ela inicia-se com a saída da personagem principal do tribunal (onde foi ilibada pela própria vítima que procura “abafar” o escândalo, temendo as repercussões na família) e com a viagem de retorno a casa e ao confronto culpabilizante com o marido. Durante o percurso, Teresa Desqueyroux procura perceber por que motivos chegou a esta situação-limite, construindo-se, portanto, o romance em dois registos temporais: no presente diegético e em “retornos” ao passado, por sucessivos “flashes”, através dos quais se vão revelando a infância e a adolescência desta mulher, forjadas numa “pureza” que é, antes do mais, isolamento, ignorância das “coisas da vida” e de qualquer questionamento perturbante, o casamento de conveniência com um homem a quem ela rapidamente despreza por mesquinhez e boçalidade e, por fim, as circunstâncias que lhe facilitaram a tentativa de perpetração do crime.

Este tipo de construção prepara o leitor para o “clímax” inevitável, reforçando a dimensão trágica da trama e da personagem (Mauriac sempre reconheceu uma influência determinante em Racine), e, por outro lado, torna claro que a motivação de Teresa Desqueyroux não é resultante de nenhuma circunstância concreta, mas de um furor de viver que se sente bloqueado, devido à convicção de que a sua existência é um inevitável discorrer sem grandeza dentro de um universo fechado (é desta forma que quase sempre Mauriac caracteriza a instituição familiar). Esta ambiência asfixiante é ainda acentuada por uma técnica narrativa que coloca permanentemente o narrador “dentro e fora” da personagem principal, “empurrando” o leitor para dentro do “casulo” em que esta vive e obrigando-o, por isso, a uma atitude empática e cúmplice.

Foi esta atitude estética que, entre outros aspectos, Sartre principalmente condenou na obra de Mauriac, urna vez que entendia que ela nunca permitiria um juízo distanciado sobre o comportamento das personagens. No entanto, ela era resultante da mesma perspectiva ética que levou Mauriac a posições públicas denunciatórias da hipocrisia dominante: a de tentar integrar-se na motivação do outro, mesmo que para isso fosse necessário confrontar-se radicalmente com princípios que sempre se assumiram como estruturantes da realidade e da prática social. Além disso, a criação coerente de um universo que obrigue o leitor a uma deslocação para o “exterior” dos seus valores éticos e estéticos, através de um processo empático, tem-se revelado cada vez mais como a única forma da literatura propiciar aquela necessária compreensão do outro - que é um dos seus objectivos.

Saliente-se, por fim, que a presente tradução, já com quarenta anos, é ainda de uma excelente qualidade, pela sua capacidade de reproduzir o estilo preciso e envolvente do autor.


Publicado no Público em 1991


Título: Teresa Desqueyroux
Autor: François Mauriac
Tradução: Nataniel Costa
Editor: Editorial Presença
Ano: 1991
125 págs., € 8,31




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