O JOGO DAS APARÊNCIAS
Uma tempestade que se avizinha no horizonte, uma ilha junto à costa, uma fortaleza inacessível na sua escarpa: no seu interior, quatro revolucionários condenados à morte esperam em vigília, durante toda a noite, a sua execução ao alvorecer. É este o ambiente trágico, sombrio, genuinamente romântico e oitocentista que, em particular pela sua dimensão de artifício e teatralidade, se ajusta na perfeição ao exercício metafísico sobre a aparência que é As Mentiras da Noite de Gesualdo Bufalino.
Esse exercício tem como maestro o próprio governador da fortaleza, pois que, ao propor aos condenados para que considerem, na última hora de vida, a hipótese de denunciarem, anonimamente e para uma urna, a identidade do seu chefe em troca da sobrevivência, está a colocar-lhes, na derradeira balança, uma basilar questão: se mais vale respeitar a vida, podendo “ser mais um pouco uma gota inconfundível no mar da existência” e continuar assim essa aparência de ser, que o sentir e o pensar origina, ou ser coerente com uma fantasia da existência, uma “inefável ideia”, já concretizável ou não na história dos outros, nunca se chegando a saber se está certa ou errada, se é justa ou injusta.
Mas esta opção, que pode parecer ainda entre uma existência real e uma convicção, vai revelar-se falsa ou, pelo menos, “recuada” e demasiado simples. Os “raccontos” autobiográficos com que cada um consome o tempo de vigí1ia, perante os outros e perante o pseudo-frade Cirillo, um enigmático bandido também condenado à morte, revelam que todas as suas existências assentam numa “vilania” e não passam da sombra de outrem ou até (como o próprio Cirillo, no final, as sintetiza) de uma “máscara” que oculta cada um, sendo a ideologia revolucionária uma mera maquilhagem com que realçam os contornos dela. De facto, nenhuma daquelas figuras realmente existiu e, por conseguinte, a eventualidade da execução torna-se um mero acidente, o simples apagar de uma imagem.
Natural, portanto, que aqueles “raccontos” flutuem entre o evento e a ficção e que criem, quando se desvenda a verdadeira identidade de Cirillo, um jogo de espelhos onde se reflecte, numa multiplicação de aparências, a existência de fantoche do próprio governador. Por isso, ele interroga-se, desesperado e lúcido, no seu testamento: “Quem sou eu? Nós, os homens, quem somos? Somos verdadeiros, somos pintados? Trapos de papel, simulacros não criados, inexistências que surgem no palco de uma pantomima de cinzas, bolas insufladas pela palhinha de um prestidigitador inimigo? Se assim for, nada é verdade. Pior: nada é, cada acontecimento é um zero que não pode sair de si. Todos nós apócrifos, mas apócrifo também quem nos dirige ou retém, quem nos une ou separa: nada metafísicos, nós e ele, misturados ao acaso por um erro recidivo: narizes de carnaval em caveiras cheias de buracos de ausência…”
No fundo, no pessimismo de As Mentiras da Noite, nada existe a não ser ficções. Ou talvez exista, mas então a única presença real é uma alucinação: esse rato, o Mostazzo, que vai roendo o interior do governador, fazendo deste um mero invólucro dele, e prenunciando-lhe, nas dores físicas e morais, o fim inevitável. Depois da tempestade passar, depois das paixões políticas deixarem de ter sentido, fica só um tempo roedor, criador de dúvidas insolúveis, de obscuridades, onde a alma se afunda e desaparece.
Realce-se, por fim, a oportunidade desta edição, pois espera-se que inicie no momento certo a tradução da obra de um dos mais importantes escritores (Gesualdo Bufalino é também poeta e ensaísta) contemporâneos de Itália. Reservado, tímido, parecendo uma personagem saída dos livros que escreve, este siciliano, vivendo isolado na sua pequena cidade natal, só começou a publicar ficção depois de reformado e já com 60 anos. Mas, desde a publicação da sua primeira novela (Diceria dell Untore) em 1981, obteve um natural reconhecimento crítico e público, porque, desde logo, conseguiu criar um universo literário inconfundível, onde erudição e uma minuciosa preocupação formal se conjugam na construção de complexas e simbólicas arquitecturas ficcionais, perpassadas por uma obsessiva preocupação pela morte e pela irrealidade da realidade.
Publicado no Expresso em 1990
(Foto do Autor de Loris dalla Nora)
Título: As Mentiras da Noite
Autor: Gesualdo Bufalino
Tradução: Simonetta Neto
Revisão Literária: João Rodrigo Narciso Furtado
Editora: Difel
Ano: 1990
Ano: 1990
161 págs., esg.
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