O LASTRO DA DOR
Em nenhum outro período histórico, provavelmente, como na época contemporânea, houve uma situação, semelhante a um “buraco negro”, em que toda a civi1ização ocidental se afundou, criando uma espécie de grau zero, onde todos os valores têm obrigatoriamente de ser revistos, nem que seja para continuar uma insatisfeita subsistência: essa situação foi a do universo concentracionário. E, durante muito tempo mais, há-de ainda permanecer no ar esta pergunta: como foi possível que esta civilização permitisse gizar, em campos de extermínio, a brutalidade de planos implacáveis, metódicos, sem rosto, de genocídio?
Para quem viveu essa experiência, ela revela-se como inexprimível, em particular a alguém que a não viveu, tal é a dimensão de ínfima humanidade, de dor vegetal, que provocou; e todos os testemunhos dela são sempre encarados como afloramentos desvirtuados de uma situação opaca, já que se recusa a qualquer comunhão colectiva. E, contudo, em paralelo, essa experiência, para quem a viveu, exige obsessivamente um testemunho que funcione como uma luz vermelha nos recônditos da nossa memória e como um alarme de um impossível que já se tornou possível.
Primo Levi foi um dos inúmeros judeus que foi parar a Auschwitz. E essa experiência, essa “aventura”, para utilizar uma expressão característica do autor, marcou-o para o resto da sua vida: “Eu nada esqueci; não posso deixar de ter presente na minha memória as palavras e os seres que me rodeavam”, afirmou numa entrevista dada a Philip Roth em 1986, um ano antes de morrer.
Como refere em O Sistema Periódico, uma das obras agora traduzidas, Primo Levi era descendente de uma família judia, ancestralmente fixada no Piemonte, e nasceu em Turim, em 1911. Foi na comunidade judaica desta cidade, com códigos culturais e até linguísticos muito particulares, que o autor viveu a sua infância e adolescência, criando vínculos culturais que as circunstâncias históricas posteriores só vieram acentuar. Empolgado pelos estudos químicos, Primo Levi, desde muito cedo, orientou nesse sentido a sua formação, porque, como ele assinala em O Sistema Periódico, estava convicto que o conhecimento científico da matéria lhe possibilitaria estabelecer uma melhor concepção da ordem natural do que todos os conhecimentos filosóficos e especulativos.
Entretanto, enquanto preparava a sua licenciatura em Química, ia-se consolidando, ao seu redor, o fascismo, esboçando-se a ordem política que provocaria a II Guerra Mundial. Em 1943, após a ocupação nazi da Itália, envolve-se na resistência piemontesa e é de imediato preso. Inicia-se então, em 1944, o calvário de Primo Levi pelos campos de concentração nazis. Liberto de Auschwitz pelo exército soviético, regressa a Itália através de um longo e doloroso périplo por uma Europa devastada pela guerra.
Mas não conseguiu libertar-se, nesse regresso, das imagens e das emoções brutais do holocausto por que passara. Como o próprio Primo Levi refere em O Sistema Periódico: “As coisas vistas e sofridas ainda me queimavam por dentro; sentia-me mais próximo dos mortos do que dos vivos, e culpado de ser homem, porque os homens tinham edificado Auschwitz, e Auschwitz engolira milhares de seres humanos, muitos meus amigos, e uma mulher que me estava no coração.” Sentiu então necessidade de escrever, de contar, de “purificar-se” de uma experiência que o manchara: foi desta forma que nasceu o seu primeiro livro Se Ainda É Um Homem (a editar brevemente em Portugal) e que começou uma importante obra literária que deu títulos como Lilith, A Trégua, Agora Ou Nunca e estes Se Não Agora, Quando? e O Sistema Periódico.
Se Não Agora, Quando?, a obra agora traduzida e editada pelas Publicações Dom Quixote, excepcionalmente em Primo Levi, não tem um cunho autobiográfico. Como o autor refere numa nota final, este romance pretende descrever a vida de “homens e mulheres que anos de sofrimento tinham endurecido mas não humilhado, sobreviventes de uma civilização (…) que o nazismo destruira pela raíz”. Essa civilização é a das comunidades judaicas da Europa de Leste, em particular as radicadas na Polónia e na Rússia; esses homens e essas mulheres são os resistentes judeus ao nazismo que, isolados e sem preverem qualquer futuro, procuravam, de armas na mão, conquistar uma morte digna.
Abrangendo um período que vai de 1943 a Julho-Agosto de 1945, toda a acção de Se Não Agora, Quando? se situa em redor das peripécias bélicas de um grupo de resistentes - os “gedalistas’ - nas estepes russas e polacas, os seus contactos com outros grupos de resistentes não-judeus e com o exército soviético, e, por fim, a sua deslocação, durante o colapso do regime nazi, pela Europa Central até Itália, onde projectam embarcar a caminho de Israel.
Este romance, resultante de um testemunho recolhido por um amigo de Primo Levi num campo de acolhimento de “foragidos de guerra”, mas quase por completo ficcional, pretende narrar uma realidade extrema e desesperada, procurando eliminar toda a dimensão de libelo acusatório e fazendo um esforço analítico e descritivo imparcial e objectivo. Daí que Se Não Agora, Quando? tenha, antes do mais, um duplo interesse histórico (note-se que o romance é acompanhado por uma significativa bibliografia onde o autor se fundamenta para a composição deste tema): por um lado, permite ao leitor mergulhar nos hábitos e costumes de um povo com uma longuíssima tradição cultural (com variantes distantes como o “hassidismo” e o “judaísmo talmúdico”); por outro, transmite-nos uma imagem dos judeus durante a II Guerra Mundial bem diversa daquela que comummente é dada: a imagem do judeu resistente que, libertando-se da vertente cultural ”hassidica” de resignação e piedade, resolveu, face à barbárie, vender caro o dom fundamental da vida.
No fundo, Se Não Agora, Quando? mostra-nos, através da narração de uma série de destinos individuais, o sofrimento épico de todo um povo que, de repente, viu deceparem-lhe os estreitos vínculos que o prendiam a uma vasta região e que, por isso, só conseguiu sobreviver agarrando-se a uma mística sionista. É esta mesmo, note-se, uma das contradições mais patéticas da história judaica: ter sido no momento histórico em que o anti-semitismo se revelou como mais radical que o sionismo assumiu uma verdadeira dimensão social e um objectivo preciso - Israel.
À justificação tradicionalmente dada da errância judaica - destino irremediável que deverá sofrer um povo deicida –, Se Não Agora, Quando? contrapõe uma outra razão mais fundamentada na cultura hebraica: o peso ancestral de uma imagem utópica de Sião, o lugar paradisíaco na Terra, continuamente procurado e ininterruptamente destruído. Assim, a errância judaica é uma simples e permanente “aliya” (o termo hebraico que define a migração libertadora e redentora para Sião). Mas, por conseguinte, o povo judeu não é por essência nómada: pelo contrário, está enraizado a um lugar que não existe, mas que ele procura construir com um empenho que ultrapassa a existência individual e que estabelece um cimento coeso a todo este povo, seja qual for o ponto da Diáspora onde se encontre.
É por isso que este romance de Primo Levi está impregnado por um intenso optimismo (difícil de encontrar noutras obras deste autor), mesmo quando se narram situações limite de desumanidade e violência. Se Não Agora, Quando? revela uma enorme vivacidade de escrita, encadeando rápida e estreitamente as cenas dramáticas, e dando, assim, muitas vezes, a sensação de estarmos em presença de um puro romance de guerra.
Um outro interesse deste romance de Primo Levi está no modo como clarifica as difíceis e complexas relações entre a comunidade judaica e o Estado soviético neste período de libertação do território russo da ocupação nazi. É certo que, ao exército soviético, interessavam as acções de sabotagem realizadas pela resistência judaica no interior das linhas alemãs; por outro lado, é também certo, e isso está expresso inúmeras vezes no decorrer da acção de Se Não Agora, Quando?, que os judeus ficaram gratos ao povo russo pelo seu epopeico esforço na guerra contra o nazismo. Mas a incompreensão soviética pelo nacionalismo judaico fez com que nunca desaparecesse a desconfiança mútua, e este romance demonstra como o apoio a estes resistentes judeus, por parte do exército soviético, foi puramente táctico, e como, algumas vezes, este se desinteressou da sua sorte, abandonando-os, desarmados, diante das ofensivas nazis.
Quanto ao outro livro de Primo Levi agora editado pela Gradiva, O Sistema Periódico, pode-se, antes do mais, afirmar que tem características muito distintas do anterior e que é, inegavelmente, bem original e difícil de classificar.
O autor pretende nele descrever apenas algumas das suas experiências e emoções como químico. Para isso, resolve associar a cada elemento químico uma situação autobiográfica em que ele, directa ou indirectamente, esteve presente, ou uma personagem real ou inventada que tenha características análogas, ou ainda uma história ficcionada que ilustre as funções desta ou daquela substância, etc.
Mas, sob este objectivo na aparência simples, oculta-se uma outra intenção mais profunda: a de comprovar, caso a caso, como a relação entre matéria e espírito não é pura “química”, e como se pode descobrir, através do convívio científico com as substâncias, uma ordenação cósmica, e, ao mesmo tempo, elementar, que permite interrelacionar a matéria inorgânica a um juízo moral, por exemplo.
Saliente-se que é em O Sistema Periódico que mais se revela a diversidade dos cambiantes estilísticos de Primo Levi, em particular a dimensão lírica e nostálgica da sua prosa. E se alguns destes capítulos são notáveis de observação e argúcia sobre certas situações e personagens, um há, no entanto, que me parece importante realçar pelo seu carácter excepcional: é o último capítulo, intitulado “Carbono”.
Este texto, de uma beleza de certo modo inesperada, narra o ciclo de uma molécula ao longo dos séculos, passando pelas rochas, pelos seres vivos, pela água, até, depois de um infinito circuito, se ir, por fim, depositar no cérebro do narrador e contribuir para escrever o ponto final com que a obra se encerra. A leitura deste capítulo deixa-nos a tal ponto surpresos quanto à capacidade de Primo Levi em transformar um assunto potencialmente árido numa narrativa empolgante, e até comovente, que nos leva a interrogar como foi possível que a sua obra só se começasse a divulgar entre nós após o obscuro suicídio de Primo Levi em 1987.
Publicado no Expresso em 1988.
Título: Se Não Agora, Quando?
Autor: Primo Levi
Tradutor: José Colaço Barreiros
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
328 págs., € 15,00
Título: O Sistema Periódico
Autor. Primo Levi
Tradutor: Maria do Rosário Pedreira
Editor: Gradiva
Ano: 1988
195 págs., € 6,54
1 comentário:
... quanto ao livro abordado conhecia-o pelo titulo A Tabela Periódica.
Primo Levi, ofereceu-nos um testemunho aliciante das difíceis provações dos prisioneiros de Guerra subjugados pelo poder Nazi.
Enviar um comentário