sábado, 29 de junho de 2013

JAY MCINERNEY






A SALVAÇÃO INDIVIDUAL



No início dos anos oitenta, em diversos órgãos internacionais de comunicação social, que dão alguma atenção à literatura, apareceram artigos sobre uma nova tríade de autores americanos (ou melhor, nova-iorquinos) que, segundo eles, testemunhavam nas suas obras uma nova forma de representar literariamente as recentes vivências sociais urbanas, em particular aquilo a que se convencionou chamar o modo de estar “yuppie”. Esses autores eram Breat Easton Ellis, Tama Janowitz e Jay McInerney e, de imediato, foram traduzidos os seus livros em todo o mundo, incluindo Portugal. Esses artigos etiquetavam a sua estética narrativa como “literatura minimal”, consideravam que esta estética era a consequência lógica do “dirty realism” e que, por isso, estes autores tinham como “guru” alguém que, esse sim, tinha renovado as técnicas clássicas da “short-story” americana e rompido com as gerações literárias anteriores: Raymond Carver.

No meio desta confusão, o tempo, porém, veio separar o trigo do joio e deixar perceber aquilo que os “fumos” promocionais não permitiam: que a tríade de autores referida quase nada tinha a ver com a obra de Raymond Carver; que estes escritores, para lá da realidade social sobre que se debruçavam (e debruçam), pouco ou nada tinham em comum; que Easton Ellis, com um pouco de cabotinismo à mistura, era, de facto, um escritor com algo de perturbador e até de genial; que Janowitz, pelas obras que mais tarde realizou, tinha uma opção “minimal” mais resultante da sua falha de recursos do que de uma assunção estética; e, por fim, que McInerney era, de facto, um escritor de algum talento que, através de um trabalho aturado de apuramento estilístico e de construção narrativa, progredia de obra para obra até obter um estatuto próprio no conntexto literário americano.

A única coisa que a promoção afirmava correctamente, aquando do lançamento do primeiro livro de Jay McInerney, publicado ainda este não tinha trinta anos e traduzido em português com o título de Mil Luzes de Nova Iorque, era que este tinha sido aluno de Raymond Carver num dos cursos de “escrita criativa” que fervilham nas universidades americanas. Porém, mesmo reconhecendo a utilidade dos ensinamentos de Carver, McInerney nunca se considerou como seu discípulo e a maior evidência deste facto são os quatro romances posteriores (o primeiro, que lhe deu sucesso em todo o mundo, é notoriamente o mais fraco) e em particular o último (ou talvez penúltimo, porque quando esta recensão for publicada já terá saído nos Estados Unidos um novo romance, Model Behavior), agora publicado no nosso país com o título O Último dos Savages.

Como modelo, pode afirmar-se que O Último dos Savages está quase nos antípodas da “short-story” típica de Carver: a sua estrutura é, de uma forma assumida, convencional, com o final de cada elemento sempre pontuado com contextos de maior dramaticidade, de molde a funcionar como factor dinâmico da narrativa. Além disso, estamos em presença de uma saga de uma geração - coisa que é de todo estranha à obra do contista.

De certo modo, este romance pretende ser uma visão ampla da geração americana que lutou contra a segregação racial e a guerra do Vietname nos “campus” universitários, ao mesmo tempo que se iniciava sexualmente em adolescênticos quartos transfigurados pelo haxixe, a cocaína e os alucinogénios, e ao som da música negra, em particular o “soul” e o “rytm’nd blues”.

O romance narra a relação de amizade de dois jovens que partilharam as mesmas instalações num colégio pré-universitário e que têm origens bem distintas: o narrador é originário de uma família de classe média de uma cidade fabril de New England e o seu amigo, Will Savage, é oriundo de uma família poderosa de Memphis, Tennessee, com plantações, interesses em negócios de armas e ramificações obscuras na vida política. E esta origem distinta vai, no essencial, determinar o seu comportamento ao longo da vida: enquanto o primeiro, no seu desejo de ascensão e afirmação, aceita sempre as regras dos compromissos sociais, mesmo culpabilizando-se por esta atitude, o outro rebela-se contra o passado familiar, construído na exploração e violência sobre a população negra e na utilização dos canais corruptos da administração pública; enquanto um se sente humilhado pela mediocridade cultural e pela inépcia social da sua família, o outro alia-se aos negros na sua luta contra a opressão emocional que a família pretende impor-lhe.

De qualquer modo, ambos assumem a família como um estigma, com a qual têm uma relação culpabilizada, e, por isso, todo o seu percurso é realizado com a intenção de silenciar em si mesmos a “memória da família”. Mas é também esta envolvência culpabilizada, com que iniciam a sua vida adulta, que cimenta a cumplicidade que os une, mesmo seguindo caminhos opostos. No fundo, o que O Último dos Savages procura demonstrar é que o pretenso carácter revolucionário desta geração é muito mais resultante de uma necessidade de “salvação individual” do que qualquer intenção social: esta é um meio, não um fim. É esse o sentido do inesperado final do romance, quando o narrador, ao sentir que inicia a curva descendente da sua vida, compreende que tanta loucura, sofrimento e sacrifício, para além de instituírem alguns percursos sociais alternativos, alargando as hipóteses do “establishement”, só serviram, como nas gerações anteriores, para conseguir que seja mais possível alguma felicidade neste mundo para as gerações vindouras.

Não se pode dizer que haja muita inovação nesta visão nostálgica e mais ou menos psicologista de Jay McInerney sobre os anos sessenta e setenta. Provavelmente, nem era isso que pretendia. De qualquer forma, é inegável que o romance tem um conjunto de situações e de personagens secundárias que caracterizam bem o clima social e cultural que se viveu naqueles anos. Nesse sentido, como refere o muito bom texto das badanas da edição portuguesa, há muito de fitzgeraldiano neste romance, como, por outro lado, nas situações de ansiedade tormentosa das iniciações sexuais e de cumplicidade adolescêntica, existem notórias similitudes com Uma Agulha no Palheiro de J. D. Salinger.

Sem ser ainda o romance de uma geração, esta obra de Jay McInerney é de uma leitura agradável, em particular pela limpidez estilística (o “incipit” do romance é tão deliciosamente certeiro que não resisto a citá-lo: “A capacidade de ter amigos é a maneira de Deus pedir desculpa pelas famílias que temos.”) e a boa concepção de algumas situações romanescas.


Publicado no Público em 1998.



Título: O Último dos Savages
Autor: Jay McInerney
Tradução: Telma Costa
Editora: Teorema
Ano: 1998
299 págs., € 16,18



quarta-feira, 26 de junho de 2013

WILLIAM SAROYAN




UMA GENEROSIDADE FIASCADA



Uma das tónicas mais constantes da literatura americana é uma “generosidade” - para melhor a definir, podemos chamar-lhe “whitmaniana” - que se reflecte num apelo à existência de uma estreita consonância com a Natureza e com os problemas dos homens (entendendo estes como um elemento integrante, mas, muitas vezes, mal ajustado, da paisagem) como matriz primordial da criação literária.

Um decisivo contributo para esta tónica foi dado pela lufada de vitalidade (que, como hoje é consensualmente aceite, era muito mais aparente do que real) da obra de Hemingway. E o impacto foi tal que muitos outros autores, aprendendo melhor ou pior a lição, lhe seguiram a esteira.

Um deles, que sempre reconheceu o que devia a Hemingway, foi William Saroyan, um ficcionista e dramaturgo californiano, de origem arménia, que, começando a publicar na década de trinta, obteve logo um tremendo sucesso, ao ponto de ser encarado como um dos maiores valores de sempre da literatura americana.

Actualmente, só se pode compreender o êxito desta obra, caracterizada pela já referida generosidade e um empolgado humanismo, pelo contexto de depressão económica em que apareceu. No fundo, ela vinha transmitir uma enorme convicção nas potencialidades inerentes a qualquer homem, mesmo o mais humilde, o que caia bem em leitores asfixiados por problemas económicos e sociais.

É também esse humanismo quase adolescêntico que provavelmente justifica o sucesso da obra de William Saroyan na Europa do pós-guerra - numa altura em que quase tudo o que era americano era considerado heroico e positivo - e a extraordinária receptividade que obteve entre os escritores do nosso país. O prefácio de O Homem Com O Coração Nas Terras Altas, uma colectânea de “short-stories” dos anos trinta agora editada entre nós, da autoria do escritor Baptista-Bastos, é ainda bem sintomático, pelo seu tom laudatório, da influência que este autor exerceu sobre toda uma geração.

Porém, é nítida a irregularidade de uma obra que inúmeras vezes foi escrita, como o próprio autor confessou, sob uma incontrolada premência e, por conseguinte, sem muitas preocupações com os resultados artísticos. Os seus romances são, neste momento, quase ilegíveis; e a parte da obra de William Saroyan que ainda é de destacar - a que se adequava melhor a sua peculiar personalidade - é a composta pelas “short-stories” e pelos textos dramáticos.

Para o melhor e para o pior, as histórias de O Homem Com O Coração Nas Terras Altas revelam todas estas características. Nelas aparece todo o tipo de personagens bem comuns à restante obra do autor: empregados de escritório sonhando com outras vidas, bêbados desadaptados e carentes de afecto, jovens mães solteiras, adolescentes impacientes por serem adultos, proféticos pequenos comerciantes, emigrantes que trabalham sazonalmente de terra em terra, donas de casa frustradas, padres e prostitutas, boxeurs mal-amados, escritores de obra adiada, etc., gente banal com histórias banais que William Saroyan registava em frenesim, procurando, e nem sempre conseguindo, conceder-lhes uma significação que ultrapassasse as suas limitadas existências.

As personagens destas histórias, em geral, são representadas a viver um mal-estar resultante de dificuldades de comunicabilidade, preciosidade que todas anseiam, mas que uma civilização “materialista”, ao incutir espírito de competição e de desconfiança, frustra, obrigando-as a isolar-se em universos fechados (bem reveladoras desta compreensão um pouco ingénua da realidade são histórias como "Os Vivos e Os Mortos", "Os Nossos Amigos Ratos" e "A Declaração de Guerra").

Muitas vezes, estas histórias caem no pecado mortal de se perderem em pormenores insipientes ("Os Vivos e Os Mortos", "O Mensageiro") ou são tão simplistas que se tornam óbvias e monótonas ("Segredos em Alexandria", "A Mãe", "A Visão", etc.). No entanto, algumas, em particular as que conseguem libertar-se de um certo idealismo optimista e opaco, revelam-se, pela concisão e ligeireza estilística, emotivos retratos de situação (como é o caso de "O Irmão Mais Novo", de "Namorada Namorada Namorada" e "Irmãos e Irmãs"), justificando o papel que este autor teve na formação da sensibilidade “beat”. Ou ainda, talvez as mais interessantes, aquelas que conseguem levar até ao mais radical absurdo as situações de incomunicabilidade ("O Homem Com O Coração Nas Terras Altas" e "Alguma Vez Se Apaixonou Por Uma Anã"), aproximando-as das experiências dramáticas que, noutras paragens e algum tempo depois, vão aparecer pela pena de Samuel Beckett.


Publicado no Público em 1992.



Título: O Homem Com O Coração Nas Terras Altas
Autor: William Saroyan
Prefácio: Baptista-Bastos
Introdução: Herb Caen
Tradução: Ana Cristina Ferreira de Sousa
Editor: Bertrand Editora
Ano: 1992
205 págs., esg.





quarta-feira, 19 de junho de 2013

NÉLIDA PIÑON




O MAGNO REGISTO DA VIDA



A leitura de A República dos Sonhos de Nélida Piñon leva-nos a reflectir inevitavelmente sobre as relações culturais luso-brasileiras e a constatar mais uma vez um facto, já bem conhecido, mas que continua, não poucas vezes, a escamotear-se: é que essas relações são demasiado ténues, muito em especial, se tiver em consideração que estão inseridas num universo linguístico comum. De facto, apesar do esforço meritório de algumas personalidades e de um empenhado intercâmbio académico, o conhecimento que existe no nosso país sobre a vida cultural brasileira é mais reduzido do que aquele que existe sobre outros países com muito menores afinidades linguísticas. E tudo leva a crer que a situação deve ser bastante similar no Brasil em relação à realidade cultural portuguesa. Não se tenha dúvidas que esta situação é em grande parte resultante de não existir uma empenhada política de aproximação cultural, coerente e continuada, por parte dos respectivos Estados. E, sem ela, pouco sentido tem a existência em letra de forma de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa ou um pomposamente apregoado “maior galardão literário em língua portuguesa”, o Prémio Camões, enquanto ele não servir - como já referiu Eduardo Lourenço num artigo bem conhecido e pertinente - de chave-de-abóbada de um efectivo intercâmbio literário entre os países de expressão portuguesa.

Bem comprovativo de tudo isto, é o facto deste romance de Nélida Piñon ter levado treze anos a atravessar o Atlântico. É certo que a sua envergadura (734 páginas de, como se diz em gíria popular, “letra miudinha”) terá contribuído para isto. Mas, por estas mesmas razões, é de toda a justiça salientar este “invulgar acontecimento editorial” e o manifesto arrojo da Ed. Presença em publicar uma obra que, e com um sincero lamento o dizemos, nada faz prever que venha a ser coroada de um legítimo êxito comercial. Tanto mais lamentável, quanto A República dos Sonhos é, numa classificação intencionalmente simplista, um dos maiores romances de sempre em língua portuguesa sobre as migrações e, por isso mesmo, uma referência obrigatória para quem quiser efectuar um adequado balanço da produção ficcional concebida na nossa língua nos últimos vinte anos.

Tudo leva a crer que a própria Nélida Piñon seja muito pouco conhecida em Portugal. Porém, esta autora arrancou com a sua obra de ficcionista há mais de trinta anos e tem já mais de uma dezena de títulos publicados. Hoje, com o estatuto de autora consagrada e influente, é presidente da Academia Brasileira de Letras, instituição que mantem um dinamismo significativo e um prestígio muito amplo.

A República dos Sonhos é uma vasta saga de uma família de emigrantes galegos que, no princípio do século, se desloca para o Brasil (para a América, como, de uma forma quase encantatória, nomeiam o sonho de aventura e riqueza que para eles representa aquele país). O romance desenrola-se a partir do momento em que Eulália, a esposa de Madruga, o emigrante bem-sucedido que construiu um império económico, “decidiu” que era altura de morrer e durante a vigília de uma semana que filhos e netos vão fazendo até à sua morte. Centrada neste núcleo de acção, a obra, através de uma estrutura complexa, vai passando em revista os acontecimentos, tanto na Galiza como no Brasil, que constituem a memória de várias gerações daquela família e que, a seu modo, orientam e fundamentam o “sonho” que movimenta cada um dos seus membros.

O sentido mais óbvio do título deste romance é o da identificação desta “república” com o Brasil; mas é importante salientar que, para Nélida Piñon, a expressão “república dos sonhos” decorre de uma cosmovisão em que o indivíduo é concebido numa dupla dimensão: uma mais superficial, definida pelo seu percurso existencial concreto, e uma outra, mais profunda, constituída pelo seu “desejo de futuro” (“o sonho”), representação crucial para a acção do indivíduo no seu espaço de sociabilidade. Ou, por outras palavras, os indivíduos são fundamentalmente o “sonho” que de si próprios fazem e é nesse registo que entram em conflito ou em confluência no mundo dos outros.

Por isso, e sem maniqueísmo excessivo - pode dizer-se que, em A República dos Sonhos, até as figuras mais secundárias são construídas com uma grande espessura -, todas as personagens têm o seu contraponto, com desejos e visões do mundo antagónicos, dando ao romance uma dimensão sinfónica, que ainda é reforçada pela existência de um número significativo de narradores que vão perspectivando os mesmos acontecimentos individuais e políticos de forma diversa e confrontante.

Como foi referido, as personagens principais deste romance reflectem de forma exaustiva o duplo estatuto de emigrante/imigrante, balançando-se, com amor e ódio, entre o “ajuste de contas” com a cultura abandonada (ou que, de certo modo, repudiou o emigrante), de molde a exorcizar esse passado e a deixá-las libertas para melhor mergulharem na nova cultura, e a estigmatização no próprio corpo do seu património, para que permaneça como sinal distintivo que permita uma reavaliação constante e profunda da cultura onde estão inseridas. O resultado desta reflexão é a transformação de A República dos Sonhos num admirável fresco sobre os destinos da Espanha e do Brasil durante este século, onde, de forma constante, se entrecruzam uma análise subjectiva, diríamos até “intimista”, e uma outra de maior explicitação ideológica.

Este romance faz também transparecer uma complexa reflexão sobre o estatuto da arte narrativa. Antes do mais, porque ela é encarada como a mais perfeita encarnação da “memória” de um povo, sendo este aqui entendido não de uma forma abstracta, mas como um colectivo de entidades distintas com desejos e sonhos diversos e muitas vezes antagónicos. Neste contexto, é bem estimulante a ponderação efectuada sobre o papel das narrativas orais e das narrativas escritas e do seu respectivo apetrechamento para resistir à função obliterante do futuro. Ao mesmo tempo, e partindo deste estatuto de “memória” do colectivo, a arte narrativa é assumida como o único e frágil meio que a História deu ao homem para dar sentido ao perecível das existências individuais.

Compreende-se assim porque é que a dimensão física deste romance nem é um acto de pura gratuitidade nem é resultante de uma incapacidade do autor em controlar o “material” narrativo em parâmetros aceitáveis. Desde o início - e retirando esse “ensinamento” da literatura oral - que se assume que, para o leitor ter direito a partilhar a “memória” narrada, deve, antes do mais, entregar-se a uma disponibilidade e a uma curiosidade que sejam equiparáveis ao esforço do narrador. A dimensão física do que é narrado serve, portanto, para alicerçar a indispensável cumplicidade entre o leitor e essa “memória”.

É quase impossível que uma obra com a dimensão de A República dos Sonhos mantenha um constante registo de intensidade e fulgor. De qualquer modo, talvez a componente mais moderna e inesperada deste romance seja a sua componente estilística. De facto, o estilo é encarado pela autora como o bisturi que fende a casca de estereótipos e de representações acomodadas à realidade que cada um faz de si próprio e que escamoteiam as intensas pulsões individuais. Desse esforço estilístico de dissecação, sobressai um resultado que não poucas vezes assume uma visão brutal dos homens e das coisas, mas que é, ao mesmo tempo, de uma intensidade lírica quase crua, o que dá a muitos trechos deste romance uma beleza muito particular e sem muitos paralelos dentro da literatura concebida na nossa língua.


Publicado no Público em 1997.


Título: A República dos Sonhos
Autor: Nélida Piñon
Editor: Editorial Presença
Ano: 1997
734 págs., € 23,92




sábado, 15 de junho de 2013

ROSETTA LOY




O QUE FICA DO PÓ



Há já algum tempo, vi um filme, de que não consigo recordar o título, em que uma adolescente dizia que, com a morte da mãe, tinha ficado a perceber a forma como as pessoas morriam. Afirmava ela que as pessoas, a certo passo das suas existências, mais por cansaço do que por doença, começam a sentir necessidade de abandonar os circuitos habituais das suas vidas, ocultando-se, a pouco e pouco, nos seus casulos. De início, os amigos e conhecidos, carentes, interrogam-se sobre o destino delas; mas que, de seguida, a vida ordena-se sobre a sua ausência e que, só então e não antes, essas pessoas de facto morriam.

A leitura de Estradas de Pó, o romance agora traduzido (bastante bem) e editado, de Rosetta Loy, trouxe-me à lembrança esta fala: é que, a seu modo, a compreensão da existência, que este romance expressa, é bem semelhante.

Estradas de Pó narra a vida de quatro gerações que, durante o séc. XIX, construíram e habitaram uma casa rural em Monferrato, no Norte de Itália. Por ela e pelos seus habitantes vão passando as conturbações de um período que ficou assinalado pelas campanhas napoleónicas, a guerra franco-austríaca e, por fim, as lutas do “risorgimento” e da reunificação da Itália. Mas estes acontecimentos são “vividos”, isto é, aparecem sempre na perspectiva do envolvimento, voluntário ou não, das personagens e é só assim que se integram na acção narrativa.

Entra-se neste romance e, de ínicio, parece-nos difícil compreender os seus objectivos. Crê-se que o narrador de Estradas de Pó pretende apenas revelar as vidas daquelas personagens, dando uma sentida expressão às suas emoções e paixões e enquadrando-as com saber e rigor no quotidiano daquela época que, não sendo muito distante, já tem suficientes especificidades para dar ao leitor uma nítida consciência da passagem do tempo. Porém, gradualmente, percebe-se que a motivação, que subjaz ao romance, é a compreensão da existência dentro de uma certa “tonalidade” (tonalidade essa que faz com que Estradas de Pó faça tanto lembrar os filmes de Ermano Olmi); e, de súbito, torna-se claro o carácter um pouco enigmático do seu título.

Pela proliferação dos seus cruzamentos e ligações, as estradas não levam a lado nenhum: a sua infinita mobilidade torna-as imóveis, simples depositárias do pó que vai deixando quem por elas é obrigado a passar. As estradas são a metáfora de existências que se cruzam, aproximam e afastam, reproduzem e desaparecem. Tudo isto acontece com uma exaltação que transfigura estas existências em únicas e absolutas. No entanto, observadas à distância (e, nesse sentido, compreende-se a opção ponderada e eficaz pelo séc. XIX), percebe-se que aquela exaltação não passa de efémera nuvem de pó que, rapidamente, se deposita na estrada, cobrindo-a de tonalidades outonais: o narrador sabe que o único olhar possível sobre estas vidas é nostálgico e melancólico, afogando nele todas as suas pretensas dimensões trágicas e épicas. As existências tornam-se, desde a infância à velhice, permanentes recuos até à imobilidade e ao mutismo de quem vê, na berma da estrada, a exaltação de outras vidas mais uma vez a esfumar-se em nada ou em muito pouco.

O que fica? Fantasmagorias, magnânimos sinais para quem fica “tocado” pela beleza que qualquer vida tem por existir, mesmo de forma breve. É esse “toque” que impõe ao narrador - último observador provisório e garante de uma memória - a necessidade de as fazer “renascer” pela plasticidade de um estilo. O que fica do pó que se deposita nas estradas da existência é a arte de um estilo.

Em termos formais, Estradas de Pó não traz, por conseguinte, nenhuma particular novidade. Nem é esse o objectivo da produção ficcionista de Rosetta Loy, uma escritora que começou a publicar na década de setenta com uma manifesta receptividade por parte da crítica italiana. As suas intenções centram-se na clareza e intensidade de um estilo, trabalhado de forma exaustiva até atingir uma equilíbrio classicizante entre concisão e expressividade, e na transmissão ao leitor da empatia que, para o autor, qualquer personagem, mesmo nas suas dimensões mais obscuras, necessariamente tem que ter. Neste sentido, não há dúvida que Estradas de Pó é um romance muito bem conseguido.

Publicado no Público em 1992.



Título: Estradas de Pó
Autor: Rosetta Loy
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
199 págs., € 5,04



segunda-feira, 10 de junho de 2013

PAULE CONSTANT



O ANIMAL INVISÍVEL DO CORPO


Mal se inicia a leitura de Confidência Por Confidência, a obra da escritora francesa Paule Constant que ganhou o Prémio Goncourt do ano passado, percebe-se que esta segue uma das estratégias narrativas mais comuns (e talvez das mais convencionais) do romance de origem feminina: a de juntar algumas mulheres num espaço fechado (em geral, uma casa, longe da multidão, isto é, dos homens), onde reflectem, numa total disponibilidade emotiva, a sua experiência amorosa e social, efectuando uma espécie de juízo final sobre os dias que lhe deram como sorte inevitável.

A ironia do último parêntese não é gratuita. É que, de facto, esta estratégia narrativa tem sempre duas constantes: a primeira, é que os homens são sempre uma espécie de “figuras fantasmagóricas” obsessivas, continuamente a entrar e a sair por todas as frestas da casa, mal permanecendo, mas deixando sempre, de diversas formas, o estigma da insatisfação afectiva às “verdadeiras” protagonistas do romance; a segunda, é que os diálogos e as encadeantes “falas” destas personagens têm sempre um último destinatário “exterior” à própria casa e funcionam como uma espécie de imprecação contra a “cidade” que as “empurrou” para esse universo interior, esse gineceu que acusam de milenarmente lhes ser imposto.

Talvez, por isso, não seja ocasional que dois romances, agora traduzidos e editados no nosso país, de autoras de espaços geográficos tão distintos como o Chile e a França, sejam exemplares desta estratégia narrativa: Tão Amigas Que Nós Somos de Marcela Serrano e o já referido Confidência Por Confidência de Paule Constant. E o confronto entre estas duas obras permite-nos compreender o grau de originalidade da obra da autora francesa: é que, enquanto o primeiro segue com rigor o modelo narrativo acima exposto, o segundo orienta as referidas falas encadeantes não para um “exterior”, como se fosse um “inimigo” distinto e abstracto, mas para uma dilacerante análise das próprias personagens, procurando reflectir o que nelas se encaminhou para um destino de desencanto e amargura.

Paule Constant, a autora de Confidência Por Confidência, iniciou a sua carreira literária na década de oitenta e tem redigido uma obra que vai obtendo o reconhecimento crítico e algum sucesso de vendas, em particular com os romances White Spirit e La Fille du Gobernator. Em resumo, uma autora tipicamente talhada para ganhar o Prémio Goncourt; talvez, por isso, foi, sem grandes polémicas e de forma um pouco previsível, que o conquistou na sua penúltima edição (o deste ano foi entregue, há poucos dias, ao romance Je m’en vais de Jean Echenoz) com a obra agora traduzida.

O palco dramático do romance de Paule Constant situa-se num “campus” de uma universidade do Arkansas, onde se realiza um congresso de “Estudos de Mulheres”, e reune quatro mulheres de meia-idade: duas francesas (uma antiga artista de cinema e uma romancista), uma argelina naturalizada americana e uma negra de origem também americana (ambas professoras universitárias). Todas têm em comum viverem de forma mais ou menos só, depois de passarem por experiências amorosas, ou intensas ou numerosas, e terem obtido alguma consagração pública com a sua vida profissional. E, já neste aspecto, o romance procura, pelo contraste, evidenciar um efeito que parece ser, de facto, menos conseguido: o confronto entre as peculiaridades de um quotidiano de mulheres bem realizadas em termos profissionais (possuindo “secretários” - que não só são seus interlocutores intelectuais como lhes resolvem os problemas “práticos” da vida -, não tendo horários, trabalhando em matérias que lhes dão prazer, etc.) e a permanência de dificuldades afectivas e existenciais quase universais a todas as outras mulheres.

Contudo, talvez esta proximidade a quotidianos, que a autora bem conhece, lhe tenha facilitado transmitir maior veracidade às suas personagens. Estruturado em capítulos que alternam de personagem para personagem, Confidência Por Confidência, com um trabalho oficinal esmerado, progride em vórtice, aumentando a intensidade e a densidade das figuras que retrata. Todas acentuadamente traumatizadas pela entidade masculina (e deve entender-se este termo na sua concepção mais ampla, englobando uma visão do poder e da sedução que privilegia a imagem em relação à palavra, um modelo da família patriarcal, mas também um certo conceito da organização social e política, assente na colonização, na fronteira e na sedentarização), condicionadas por um Outro que as asfixia (porque não responde à sua necessidade de complementarização e de construção do Andrógino), estas personagens ficam confinadas, como as feiticeiras de Macbeth, a remexer no caldeirão das suas existências, procurando, no borbulhar da fervura, um vestígio que lhes permita perceber quando apareceu no seu íntimo a ferida que lhes impossibilita a aproximação ao Outro que desejam. E em que momento elas resolveram limitar-se, em substituição desse desejo insatisfeito, a conquistar a sua parte do “espaço” que o Outro desde sempre ocupou.

Utilizando um jogo psicanalítico, que parece fácil, mas que se revela operacional no romance, Paule Constant delineia as suas figuras femininas em redor de um objecto ou de um animal que, de certo modo, corporiza o seu mal-estar emocional (uma panela de “cous-cous”, uma caixa de sapatos, um macaco ou um rato). No fundo, é como se as personagens rodeassem com a matéria nacarada da sua vida profissional este mal-estar, sabendo, no entanto, que no interior desse invólucro continua um corpo que, de súbito e de forma regular, continua a ascender à consciência delas, perturbando-as e sublinhando-lhes, a traço grosso, a “deformante incapacidade” das suas existências. Daí que a cena mais lancinante do romance apareça já no final, quando uma das personagens resolve matar com as mãos um rato, num ritual que mais parece uma forma simbólica de provocar nela própria a amnésia do seu passado.

Confidência Por Confidência é uma obra densa, amargurada, e servida por um estilo barroco, com uma significativa diversidade lexical e, por conseguinte, árduo de tradução. Não admira, por isso, que o louvável trabalho da tradutora - uma pessoa já com provas reconhecidas de competência literária - revele aqui e além algumas soluções mais contestáveis, dadas as dificuldades de se esquivar às armadilhas de um estilo, por vezes irregular, mas que ambiciona expressar os complexos matizes de personalidades que se interrogam até à dilaceração.

Publicado no Público em 1999.



Título: Confidência Por Confidência
Autor: Paule Constant
Tradutor: Helena Barbas
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1999
206 págs., esg.