sábado, 29 de junho de 2013

JAY MCINERNEY






A SALVAÇÃO INDIVIDUAL



No início dos anos oitenta, em diversos órgãos internacionais de comunicação social, que dão alguma atenção à literatura, apareceram artigos sobre uma nova tríade de autores americanos (ou melhor, nova-iorquinos) que, segundo eles, testemunhavam nas suas obras uma nova forma de representar literariamente as recentes vivências sociais urbanas, em particular aquilo a que se convencionou chamar o modo de estar “yuppie”. Esses autores eram Breat Easton Ellis, Tama Janowitz e Jay McInerney e, de imediato, foram traduzidos os seus livros em todo o mundo, incluindo Portugal. Esses artigos etiquetavam a sua estética narrativa como “literatura minimal”, consideravam que esta estética era a consequência lógica do “dirty realism” e que, por isso, estes autores tinham como “guru” alguém que, esse sim, tinha renovado as técnicas clássicas da “short-story” americana e rompido com as gerações literárias anteriores: Raymond Carver.

No meio desta confusão, o tempo, porém, veio separar o trigo do joio e deixar perceber aquilo que os “fumos” promocionais não permitiam: que a tríade de autores referida quase nada tinha a ver com a obra de Raymond Carver; que estes escritores, para lá da realidade social sobre que se debruçavam (e debruçam), pouco ou nada tinham em comum; que Easton Ellis, com um pouco de cabotinismo à mistura, era, de facto, um escritor com algo de perturbador e até de genial; que Janowitz, pelas obras que mais tarde realizou, tinha uma opção “minimal” mais resultante da sua falha de recursos do que de uma assunção estética; e, por fim, que McInerney era, de facto, um escritor de algum talento que, através de um trabalho aturado de apuramento estilístico e de construção narrativa, progredia de obra para obra até obter um estatuto próprio no conntexto literário americano.

A única coisa que a promoção afirmava correctamente, aquando do lançamento do primeiro livro de Jay McInerney, publicado ainda este não tinha trinta anos e traduzido em português com o título de Mil Luzes de Nova Iorque, era que este tinha sido aluno de Raymond Carver num dos cursos de “escrita criativa” que fervilham nas universidades americanas. Porém, mesmo reconhecendo a utilidade dos ensinamentos de Carver, McInerney nunca se considerou como seu discípulo e a maior evidência deste facto são os quatro romances posteriores (o primeiro, que lhe deu sucesso em todo o mundo, é notoriamente o mais fraco) e em particular o último (ou talvez penúltimo, porque quando esta recensão for publicada já terá saído nos Estados Unidos um novo romance, Model Behavior), agora publicado no nosso país com o título O Último dos Savages.

Como modelo, pode afirmar-se que O Último dos Savages está quase nos antípodas da “short-story” típica de Carver: a sua estrutura é, de uma forma assumida, convencional, com o final de cada elemento sempre pontuado com contextos de maior dramaticidade, de molde a funcionar como factor dinâmico da narrativa. Além disso, estamos em presença de uma saga de uma geração - coisa que é de todo estranha à obra do contista.

De certo modo, este romance pretende ser uma visão ampla da geração americana que lutou contra a segregação racial e a guerra do Vietname nos “campus” universitários, ao mesmo tempo que se iniciava sexualmente em adolescênticos quartos transfigurados pelo haxixe, a cocaína e os alucinogénios, e ao som da música negra, em particular o “soul” e o “rytm’nd blues”.

O romance narra a relação de amizade de dois jovens que partilharam as mesmas instalações num colégio pré-universitário e que têm origens bem distintas: o narrador é originário de uma família de classe média de uma cidade fabril de New England e o seu amigo, Will Savage, é oriundo de uma família poderosa de Memphis, Tennessee, com plantações, interesses em negócios de armas e ramificações obscuras na vida política. E esta origem distinta vai, no essencial, determinar o seu comportamento ao longo da vida: enquanto o primeiro, no seu desejo de ascensão e afirmação, aceita sempre as regras dos compromissos sociais, mesmo culpabilizando-se por esta atitude, o outro rebela-se contra o passado familiar, construído na exploração e violência sobre a população negra e na utilização dos canais corruptos da administração pública; enquanto um se sente humilhado pela mediocridade cultural e pela inépcia social da sua família, o outro alia-se aos negros na sua luta contra a opressão emocional que a família pretende impor-lhe.

De qualquer modo, ambos assumem a família como um estigma, com a qual têm uma relação culpabilizada, e, por isso, todo o seu percurso é realizado com a intenção de silenciar em si mesmos a “memória da família”. Mas é também esta envolvência culpabilizada, com que iniciam a sua vida adulta, que cimenta a cumplicidade que os une, mesmo seguindo caminhos opostos. No fundo, o que O Último dos Savages procura demonstrar é que o pretenso carácter revolucionário desta geração é muito mais resultante de uma necessidade de “salvação individual” do que qualquer intenção social: esta é um meio, não um fim. É esse o sentido do inesperado final do romance, quando o narrador, ao sentir que inicia a curva descendente da sua vida, compreende que tanta loucura, sofrimento e sacrifício, para além de instituírem alguns percursos sociais alternativos, alargando as hipóteses do “establishement”, só serviram, como nas gerações anteriores, para conseguir que seja mais possível alguma felicidade neste mundo para as gerações vindouras.

Não se pode dizer que haja muita inovação nesta visão nostálgica e mais ou menos psicologista de Jay McInerney sobre os anos sessenta e setenta. Provavelmente, nem era isso que pretendia. De qualquer forma, é inegável que o romance tem um conjunto de situações e de personagens secundárias que caracterizam bem o clima social e cultural que se viveu naqueles anos. Nesse sentido, como refere o muito bom texto das badanas da edição portuguesa, há muito de fitzgeraldiano neste romance, como, por outro lado, nas situações de ansiedade tormentosa das iniciações sexuais e de cumplicidade adolescêntica, existem notórias similitudes com Uma Agulha no Palheiro de J. D. Salinger.

Sem ser ainda o romance de uma geração, esta obra de Jay McInerney é de uma leitura agradável, em particular pela limpidez estilística (o “incipit” do romance é tão deliciosamente certeiro que não resisto a citá-lo: “A capacidade de ter amigos é a maneira de Deus pedir desculpa pelas famílias que temos.”) e a boa concepção de algumas situações romanescas.


Publicado no Público em 1998.



Título: O Último dos Savages
Autor: Jay McInerney
Tradução: Telma Costa
Editora: Teorema
Ano: 1998
299 págs., € 16,18



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