O QUE FICA DO PÓ
Há já algum tempo, vi um filme, de que não consigo recordar o título, em que uma adolescente dizia que, com a morte da mãe, tinha ficado a perceber a forma como as pessoas morriam. Afirmava ela que as pessoas, a certo passo das suas existências, mais por cansaço do que por doença, começam a sentir necessidade de abandonar os circuitos habituais das suas vidas, ocultando-se, a pouco e pouco, nos seus casulos. De início, os amigos e conhecidos, carentes, interrogam-se sobre o destino delas; mas que, de seguida, a vida ordena-se sobre a sua ausência e que, só então e não antes, essas pessoas de facto morriam.
A leitura de Estradas de Pó, o romance agora traduzido (bastante bem) e editado, de Rosetta Loy, trouxe-me à lembrança esta fala: é que, a seu modo, a compreensão da existência, que este romance expressa, é bem semelhante.
Estradas de Pó narra a vida de quatro gerações que, durante o séc. XIX, construíram e habitaram uma casa rural em Monferrato, no Norte de Itália. Por ela e pelos seus habitantes vão passando as conturbações de um período que ficou assinalado pelas campanhas napoleónicas, a guerra franco-austríaca e, por fim, as lutas do “risorgimento” e da reunificação da Itália. Mas estes acontecimentos são “vividos”, isto é, aparecem sempre na perspectiva do envolvimento, voluntário ou não, das personagens e é só assim que se integram na acção narrativa.
Entra-se neste romance e, de ínicio, parece-nos difícil compreender os seus objectivos. Crê-se que o narrador de Estradas de Pó pretende apenas revelar as vidas daquelas personagens, dando uma sentida expressão às suas emoções e paixões e enquadrando-as com saber e rigor no quotidiano daquela época que, não sendo muito distante, já tem suficientes especificidades para dar ao leitor uma nítida consciência da passagem do tempo. Porém, gradualmente, percebe-se que a motivação, que subjaz ao romance, é a compreensão da existência dentro de uma certa “tonalidade” (tonalidade essa que faz com que Estradas de Pó faça tanto lembrar os filmes de Ermano Olmi); e, de súbito, torna-se claro o carácter um pouco enigmático do seu título.
Pela proliferação dos seus cruzamentos e ligações, as estradas não levam a lado nenhum: a sua infinita mobilidade torna-as imóveis, simples depositárias do pó que vai deixando quem por elas é obrigado a passar. As estradas são a metáfora de existências que se cruzam, aproximam e afastam, reproduzem e desaparecem. Tudo isto acontece com uma exaltação que transfigura estas existências em únicas e absolutas. No entanto, observadas à distância (e, nesse sentido, compreende-se a opção ponderada e eficaz pelo séc. XIX), percebe-se que aquela exaltação não passa de efémera nuvem de pó que, rapidamente, se deposita na estrada, cobrindo-a de tonalidades outonais: o narrador sabe que o único olhar possível sobre estas vidas é nostálgico e melancólico, afogando nele todas as suas pretensas dimensões trágicas e épicas. As existências tornam-se, desde a infância à velhice, permanentes recuos até à imobilidade e ao mutismo de quem vê, na berma da estrada, a exaltação de outras vidas mais uma vez a esfumar-se em nada ou em muito pouco.
O que fica? Fantasmagorias, magnânimos sinais para quem fica “tocado” pela beleza que qualquer vida tem por existir, mesmo de forma breve. É esse “toque” que impõe ao narrador - último observador provisório e garante de uma memória - a necessidade de as fazer “renascer” pela plasticidade de um estilo. O que fica do pó que se deposita nas estradas da existência é a arte de um estilo.
Em termos formais, Estradas de Pó não traz, por conseguinte, nenhuma particular novidade. Nem é esse o objectivo da produção ficcionista de Rosetta Loy, uma escritora que começou a publicar na década de setenta com uma manifesta receptividade por parte da crítica italiana. As suas intenções centram-se na clareza e intensidade de um estilo, trabalhado de forma exaustiva até atingir uma equilíbrio classicizante entre concisão e expressividade, e na transmissão ao leitor da empatia que, para o autor, qualquer personagem, mesmo nas suas dimensões mais obscuras, necessariamente tem que ter. Neste sentido, não há dúvida que Estradas de Pó é um romance muito bem conseguido.
Publicado no Público em 1992.
Título: Estradas de Pó
Autor: Rosetta Loy
Tradução: Simonetta Neto
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
199 págs., € 5,04
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