quarta-feira, 17 de julho de 2013

MAGNUS MILLS


 
 

UM TEMPO DESUMANO

 
 Como é do conhecimento geral, renasce hoje na Escócia um certo espírito autonómico, depois de várias décadas em que subsistiu de forma larvar. Decerto, um dos factores que motivou esse “renascimento” foi a renovação cultural que se processou neste reino, em particular na sua capital, Edimburgo. O movimento editorial, que nos últimos anos redobrou de dinamismo, protagonizado por pequenas e médias editoras, a revitalização do circuito livreiro e o consequente desenvolvimento de uma vida literária mais efervescente (com inúmeras tertúlias, prémios e festivais - alguns deles já com prestígio internacional) têm tido um papel determinante para essa renovação. Resultante destas mutações, o debate cultural tornou-se intenso e, neste contexto, tem sido interessante acompanhar a reflexão sobre a tipificação do estatuto de escritor escocês. Seja como for, é hoje inquestionável que a Escócia se tornou um dos principais locais de onde tem irrompido alguns dos mais relevantes escritores contemporâneos de língua inglesa: recordo, só para referir nomes de autores que estão em plena produção e que possam ter algum sentido para o leitor português, novelistas tão diversos como Iain Banks, William Boyd, Alasdair Gray, James Kelman, Emma Tennant, Irvine Welsh ou Kenneth White. E, a comprovar esta constatação, está o seguinte facto: nos últimos anos, têm sempre aparecido obras de autores escoceses na “short-list” do Booker Prize; ainda no presente ano foi seleccionado o primeiro romance de um jovem escritor chamado Andrew O’Hagan...
 

 Também no ano passado foi seleccionada para a “short-list” daquele prémio a obra de um autor que, tendo nascido em Inglaterra, viveu a sua infância e adolescência na Escócia e escreveu um primeiro romance passado no ambiente rural escocês. Esse escritor é Magnus Mills e este romance foi agora traduzido e publicado no nosso país com o título de O Curral das Bestas. Mais assombroso - principalmente no contexto cultural britânico - é o facto deste autor, já com mais de quarenta anos, ser de origem social humilde, não ter nenhuma relação com os meios intelectuais ou académicos e exercer, no momento da publicação da sua obra, a profissão de motorista de autocarros urbanos.
 
 
 O Curral das Bestas narra o quotidiano de uma diminuta equipa de operários que trabalha para uma pequena empresa especializada em construir cercas para o gado. O narrador - o contramestre desta equipa - tem a seu cargo dois trabalhadores que, naturalmente, detestam o que fazem e procuram, de formas muitas vezes quase infantis, trabalhar o menos possível. E esta resistência trivial dá origem a situações prodigiosas e de uma violência que atinge um paroxismo próximo dos limites da irrealidade.
 
 
 O que distingue este romance são, fundamentalmente, as suas características estilísticas. Redigido em frases curtas e secas, com anotações de observação minuciosa, acutilantes na caracterização das personagens (que, de súbito, assumem uma dimensão beckettiana), O Curral das Bestas narra, através de um realismo cru, situações que têm tanto de banal como de excessivo, revelando o “non-sense” que pode revestir o mais simples quotidiano.
 
 
O humor de Magnus Mills é implacável. E, neste aspecto, a sua obra também assume um lugar de distinção na tradicional corrente humorista do romance britânico: o seu humor impiedoso transfigura as vidas medíocres das personagens de O Curral das Bestas e aproxima-as, quando subsistem sem sonho nem ambição e consomem as suas energias com o simples objectivo de se encharcarem em cerveja ao fim do dia no “pub” mais próximo, ao lado mais mesquinho que cada leitor sabe que a sua vida também tem. Pela proximidade, o leitor descobre que a embrutecida desumanidade das personagens de O Curral das Bestas é só uma versão desfigurada do seu tempo e uma forma literariamente trabalhada de lhe anunciar que não existem paraísos possíveis para redimir os seus dias.   

                                                                                 
Publicado no Público em 1999.

 (Foto do Autor de Murdo Mcleod).
 

Título: O Curral das Bestas
Autor: Magnus Mills
Tradutor: José Luís Luna
Editor: Asa
Ano: 1999
169 págs., € 3,50
 
         



terça-feira, 2 de julho de 2013

LOUIS-FERDINAND CÉLINE




O GRANDE IMPRECADOR



Quando Céline começou a escrever, no final da década de cinquenta, a sua última trilogia romanesca (D’un château l’autre, Nord, Rigodon), tinha-se generalizado a ideia de que o autor e a sua obra estavam, em definitivo, enterrados nos caixotes de lixo da História. Depois do Holocausto nazi, as suas posições anti-semitas apareciam como demasiado inoportunas e já se tinha esfumado o alarido que provocara a sua prisão na Dinamarca, sob a acusação de colaboracionismo, e o atribulado julgamento consequente. Por isso, a obra de Céline, depois de um período em que até fora difícil encontrar-lhe editor, passava indiferente nos escaparates das livrarias.

No entanto, Céline, por razões redobradas, entendia que não tinha terminado o seu ajuste de contas com a sociedade. Era-lhe necessário descrever - e fazer chegar ao grande público - todo o assombroso calvário que fora a sua vida a partir de 1944, quando começou a fugir diante dos exércitos aliados, e que agravara a sua visão pessimista da condição humana. Resolveu, por isso, abandonar o seu isolamento e aceitar uma estratégia promocional: reforçar, junto da comunicação social, a sua imagem de enjeitado da História, de vítima da incompreensão social, de bode expiatório das integradas consciências colaboracionistas.

É neste contexto que é editado em França o romance agora traduzido com o título De Castelo Em Castelo, no qual o autor projectou narrar a sua estadia junto ao castelo de Sigmaringen, no sul da Alemanha - onde Hitler, após a invasão aliada da França, concentrou os colaboracionistas e as principais figuras políticas do regime de Vichy -, e as suas alucinantes deambulações pelo devastado território alemão até à prisão em Vestre Faengsel, na Dinamarca. No entanto, o material, que constituía as peripécias trágicas e grotescas de Sigmaringen, era de tal dimensão, que o autor resolveu encurtar a obra, tornando o título, que manteve, anacrónico.

De facto, as degradantes condições em que vivia a população de refugiados de Sigmaringen, conscientes de que o seu universo desabava, acossados pelos constantes bombardeamentos e pela proximidade de um futuro que - garantidamente - traria humilhação e morte, evidenciavam aos olhos do autor a sua convicção na dimensão caricatural e mesquinha da existência e a sua certeza profética de que a ordem social estava enquinada pelo seu inevitável apocalipse.

Neste sentido, De Castelo Em Castelo acentua até ao delírio algumas das constantes da sua obra: antes do mais, que social e Mal se conjugam até quase se identificar; que, por essência, a condição humana é o paradigma perfeito da degenerescência e, por conseguinte, a morte é o único estado naturalmente (pre)vísivel; e que o ódio à morte é o sentimento mais generoso e aceitável para quem, sem equívocos, assume que a consciência é uma aberração pérfida da Natureza.

Apesar das posições de Céline - que sempre recusou que retirassem da sua obra qualquer significação civilizacional -, De Castelo Em Castelo tem o inegável relevo de ser, até hoje, o produto mais terminal, pelo menos em termos éticos, dessa figura nuclear da modernidade, desde Baudelaire, que é o artista “marginal”, radicalmente “exterior” à institucionalização social e sempre lançado às canelas dos valores burgueses. De facto, a leitura deste romance transmite, página a página, a ideia de que vem de um “espaço exterior” (é provável que não seja uma mera “boutade” a afirmação de Céline de que era arranjar meios para "pagar ao carvoeiro"o que o levava a escrever) para se confrontar em termos estilísticos com a componente institucional da literatura; e talvez seja este desejo de confronto que provoque, por reacção, a auréola de “monstruosa” com que ainda hoje se qualifica a sua última produção narrativa e panfletária.

Por outro lado, De Castelo Em Castelo - e em particular o episódio exemplar do “bateau-mouche” "La Publique" - torna evidente a impossibilidade de qualquer atitude de compromisso do autor com a evolução social: a este nível, a sua única “fraqueza” - e resultante da formação de Céline como médico “higienista” - é o seu anti-semitismo. A própria literatura tem como exclusiva função social diagnosticar as diversas frentes em que progride a gangrena mortífera.

Porém, o que hoje esta obra mais evidencia é o seu contributo para o efeito literário, tal como foi balizado na segunda metade deste século: antes do mais, que a justificação mais legítima (e democrática) para se situar neste “universo literário” é a urgência que demarca e torna inconfundível uma “voz”; que essa urgência delineia a impressão digital de um estilo; que esse estilo constrói-se de acordo com o tratamento que permanentes necessidades pessoais dão à referência literária. A “petite musique”, que, de um modo árduo, Céline procurou auscultar na fase final da sua obra, está relacionada em concreto com a necessidade de “deformar” a língua literária através do calão, de reformular a estrutura narrativa pelo plurivocalismo e pela imbricação diegética. Não se perturbe o leitor pouco habituado às formas discursivas deste autor com as suas absorventes reticências e interjeições: repare que as “micro-elipses” que estas originam são uma admirável forma de integrar a imprecação no discurso narrativo.

A tradução portuguesa revela, sem sombra de dúvidas, um imenso e empenhado esforço, tanto mais que este romance tem quase insuperáveis dificuldades de transcrição de diversas obscenidades e exclamações, de palavras deformadas ou mesmo inventadas. No entanto, o resultado final é, por vezes, polémico, em consequência da adopção de soluções demasiado contextualizadas na nossa cultura. Já inexplicável se torna a falta de qualidade editorial por parte de uma empresa com grandes responsabilidades neste sector: as gralhas são tantas (até uma página trocada aparece) que não poucas vezes o leitor perde de todo o sentido do que lê.


Publicado no Público em 1993.



Título: De Castelo Em Castelo
Autor: Louis-Ferdinand Céline
Tradutor: Leonel Brim
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
374 págs., € 7,56