terça-feira, 2 de julho de 2013

LOUIS-FERDINAND CÉLINE




O GRANDE IMPRECADOR



Quando Céline começou a escrever, no final da década de cinquenta, a sua última trilogia romanesca (D’un château l’autre, Nord, Rigodon), tinha-se generalizado a ideia de que o autor e a sua obra estavam, em definitivo, enterrados nos caixotes de lixo da História. Depois do Holocausto nazi, as suas posições anti-semitas apareciam como demasiado inoportunas e já se tinha esfumado o alarido que provocara a sua prisão na Dinamarca, sob a acusação de colaboracionismo, e o atribulado julgamento consequente. Por isso, a obra de Céline, depois de um período em que até fora difícil encontrar-lhe editor, passava indiferente nos escaparates das livrarias.

No entanto, Céline, por razões redobradas, entendia que não tinha terminado o seu ajuste de contas com a sociedade. Era-lhe necessário descrever - e fazer chegar ao grande público - todo o assombroso calvário que fora a sua vida a partir de 1944, quando começou a fugir diante dos exércitos aliados, e que agravara a sua visão pessimista da condição humana. Resolveu, por isso, abandonar o seu isolamento e aceitar uma estratégia promocional: reforçar, junto da comunicação social, a sua imagem de enjeitado da História, de vítima da incompreensão social, de bode expiatório das integradas consciências colaboracionistas.

É neste contexto que é editado em França o romance agora traduzido com o título De Castelo Em Castelo, no qual o autor projectou narrar a sua estadia junto ao castelo de Sigmaringen, no sul da Alemanha - onde Hitler, após a invasão aliada da França, concentrou os colaboracionistas e as principais figuras políticas do regime de Vichy -, e as suas alucinantes deambulações pelo devastado território alemão até à prisão em Vestre Faengsel, na Dinamarca. No entanto, o material, que constituía as peripécias trágicas e grotescas de Sigmaringen, era de tal dimensão, que o autor resolveu encurtar a obra, tornando o título, que manteve, anacrónico.

De facto, as degradantes condições em que vivia a população de refugiados de Sigmaringen, conscientes de que o seu universo desabava, acossados pelos constantes bombardeamentos e pela proximidade de um futuro que - garantidamente - traria humilhação e morte, evidenciavam aos olhos do autor a sua convicção na dimensão caricatural e mesquinha da existência e a sua certeza profética de que a ordem social estava enquinada pelo seu inevitável apocalipse.

Neste sentido, De Castelo Em Castelo acentua até ao delírio algumas das constantes da sua obra: antes do mais, que social e Mal se conjugam até quase se identificar; que, por essência, a condição humana é o paradigma perfeito da degenerescência e, por conseguinte, a morte é o único estado naturalmente (pre)vísivel; e que o ódio à morte é o sentimento mais generoso e aceitável para quem, sem equívocos, assume que a consciência é uma aberração pérfida da Natureza.

Apesar das posições de Céline - que sempre recusou que retirassem da sua obra qualquer significação civilizacional -, De Castelo Em Castelo tem o inegável relevo de ser, até hoje, o produto mais terminal, pelo menos em termos éticos, dessa figura nuclear da modernidade, desde Baudelaire, que é o artista “marginal”, radicalmente “exterior” à institucionalização social e sempre lançado às canelas dos valores burgueses. De facto, a leitura deste romance transmite, página a página, a ideia de que vem de um “espaço exterior” (é provável que não seja uma mera “boutade” a afirmação de Céline de que era arranjar meios para "pagar ao carvoeiro"o que o levava a escrever) para se confrontar em termos estilísticos com a componente institucional da literatura; e talvez seja este desejo de confronto que provoque, por reacção, a auréola de “monstruosa” com que ainda hoje se qualifica a sua última produção narrativa e panfletária.

Por outro lado, De Castelo Em Castelo - e em particular o episódio exemplar do “bateau-mouche” "La Publique" - torna evidente a impossibilidade de qualquer atitude de compromisso do autor com a evolução social: a este nível, a sua única “fraqueza” - e resultante da formação de Céline como médico “higienista” - é o seu anti-semitismo. A própria literatura tem como exclusiva função social diagnosticar as diversas frentes em que progride a gangrena mortífera.

Porém, o que hoje esta obra mais evidencia é o seu contributo para o efeito literário, tal como foi balizado na segunda metade deste século: antes do mais, que a justificação mais legítima (e democrática) para se situar neste “universo literário” é a urgência que demarca e torna inconfundível uma “voz”; que essa urgência delineia a impressão digital de um estilo; que esse estilo constrói-se de acordo com o tratamento que permanentes necessidades pessoais dão à referência literária. A “petite musique”, que, de um modo árduo, Céline procurou auscultar na fase final da sua obra, está relacionada em concreto com a necessidade de “deformar” a língua literária através do calão, de reformular a estrutura narrativa pelo plurivocalismo e pela imbricação diegética. Não se perturbe o leitor pouco habituado às formas discursivas deste autor com as suas absorventes reticências e interjeições: repare que as “micro-elipses” que estas originam são uma admirável forma de integrar a imprecação no discurso narrativo.

A tradução portuguesa revela, sem sombra de dúvidas, um imenso e empenhado esforço, tanto mais que este romance tem quase insuperáveis dificuldades de transcrição de diversas obscenidades e exclamações, de palavras deformadas ou mesmo inventadas. No entanto, o resultado final é, por vezes, polémico, em consequência da adopção de soluções demasiado contextualizadas na nossa cultura. Já inexplicável se torna a falta de qualidade editorial por parte de uma empresa com grandes responsabilidades neste sector: as gralhas são tantas (até uma página trocada aparece) que não poucas vezes o leitor perde de todo o sentido do que lê.


Publicado no Público em 1993.



Título: De Castelo Em Castelo
Autor: Louis-Ferdinand Céline
Tradutor: Leonel Brim
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
374 págs., € 7,56




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