UM TEMPO DESUMANO
Como é do conhecimento geral, renasce hoje na Escócia um certo espírito
autonómico, depois de várias décadas em que subsistiu de forma larvar. Decerto,
um dos factores que motivou esse “renascimento” foi a renovação cultural que se
processou neste reino, em particular na sua capital, Edimburgo. O movimento
editorial, que nos últimos anos redobrou de dinamismo, protagonizado por
pequenas e médias editoras, a revitalização do circuito livreiro e o
consequente desenvolvimento de uma vida literária mais efervescente (com
inúmeras tertúlias, prémios e festivais - alguns deles já com prestígio
internacional) têm tido um papel determinante para essa renovação. Resultante
destas mutações, o debate cultural tornou-se intenso e, neste contexto, tem
sido interessante acompanhar a reflexão sobre a tipificação do estatuto de
escritor escocês. Seja como for, é hoje inquestionável que a Escócia se tornou
um dos principais locais de onde tem irrompido alguns dos mais relevantes
escritores contemporâneos de língua inglesa: recordo, só para referir nomes de autores
que estão em plena produção e que possam ter algum sentido para o leitor
português, novelistas tão diversos como Iain Banks, William Boyd, Alasdair
Gray, James Kelman, Emma Tennant, Irvine Welsh ou Kenneth White. E, a comprovar
esta constatação, está o seguinte facto: nos últimos anos, têm sempre aparecido
obras de autores escoceses na “short-list”
do Booker Prize; ainda no presente ano foi seleccionado o primeiro romance
de um jovem escritor chamado Andrew O’Hagan...
Também no ano passado foi seleccionada para a “short-list” daquele prémio a
obra de um autor que, tendo nascido em Inglaterra, viveu a sua infância e
adolescência na Escócia e escreveu um primeiro romance passado no ambiente
rural escocês. Esse escritor é Magnus Mills e este romance foi agora traduzido
e publicado no nosso país com o título de O Curral das Bestas. Mais assombroso
- principalmente no contexto cultural britânico - é o facto deste autor, já com
mais de quarenta anos, ser de origem social humilde, não ter nenhuma relação
com os meios intelectuais ou académicos e exercer, no momento da publicação da
sua obra, a profissão de motorista de autocarros urbanos.
O Curral das Bestas narra o quotidiano de uma diminuta
equipa de operários que trabalha para uma pequena empresa especializada em
construir cercas para o gado. O narrador - o contramestre desta equipa - tem a
seu cargo dois trabalhadores que, naturalmente, detestam o que fazem e
procuram, de formas muitas vezes quase infantis, trabalhar o menos possível. E
esta resistência trivial dá origem a situações prodigiosas e de uma violência
que atinge um paroxismo próximo dos limites da irrealidade.
O que distingue este romance são, fundamentalmente, as suas características
estilísticas. Redigido em frases curtas e secas, com anotações de observação
minuciosa, acutilantes na caracterização das personagens (que, de súbito,
assumem uma dimensão beckettiana), O Curral das Bestas narra, através de um realismo cru,
situações que têm tanto de banal como de excessivo, revelando o “non-sense” que
pode revestir o mais simples quotidiano.
O humor de Magnus Mills é implacável. E, neste aspecto, a sua obra também
assume um lugar de distinção na tradicional corrente humorista do romance britânico:
o seu humor impiedoso transfigura as vidas medíocres das personagens de O
Curral das Bestas e
aproxima-as, quando subsistem sem sonho nem ambição e consomem as suas energias
com o simples objectivo de se encharcarem em cerveja ao fim do dia no “pub” mais
próximo, ao lado mais mesquinho que cada leitor sabe que a sua vida também tem.
Pela proximidade, o leitor descobre que a embrutecida desumanidade das
personagens de O Curral das Bestas é só uma versão desfigurada do seu tempo e
uma forma literariamente trabalhada de lhe anunciar que não existem paraísos
possíveis para redimir os seus dias.
Publicado no Público em 1999.
(Foto do Autor de Murdo Mcleod).
Título: O Curral das Bestas
Autor: Magnus Mills
Tradutor: José Luís Luna
Editor:
Asa
Ano:
1999
169
págs., € 3,50
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