quarta-feira, 14 de agosto de 2013

MARTIN WALSER


 
 
 
 
OS AFECTOS CISMÁTICOS

 
Mesmo tendo em conta os inúmeros trabalhos ensaísticos, as permanentes referências e indicações que, nos últimos anos e um pouco por toda a parte, têm sido publicados sobre a “questão do romance como forma específica de conhecimento”, um bom romance pode (e deve) contribuir para reavaliar e redimensionar algumas perspectivas do campo teórico. De facto, certos romances revelam bem a força da arte encantatória da narrativa ficcionista e demonstram, sem equívocos, como o romance pode ser, ao colocar em situação determinadas problemáticas, uma outra via de atingir, nem que seja de forma provisória, o âmago das coisas.

 
Fundamenta bem esta questão a primeira obra traduzida de Martin Walser, com o título de Dorle e Wolf – Um Amor Alemão.

 
Martin Walser é, com Günter Grass, Heirinch Böll, Hans Magnus Enzensberger e Ingeborg Bachman (esta de origem austríaca), um dos elementos determinantes do conhecido Grupo 47 que, durante cerca de vinte anos, procurou transformar em profundidade a língua literária alemã, de modo a libertá-la da retórica com que a tinha modelado o império nazi. Este autor, conhecido como dramaturgo e romancista, obteve alguns dos mais importantes prémios literários alemães (entre os quais, o outorgado pelo próprio Grupo 47 e o Prémio Herman Hesse) e possui uma já vasta obra, onde saliento os romances Ehen in Philippsburg, Seelenarbeit, Liebeserklärungen e Ein fliehendes Pferd (Um Cavalo em Fuga). De uma forma genérica, e sempre abusiva, pode afirmar-se que esta obra pretende caracterizar o mal-estar do homem alemão, nos contextos do período pós-guerra adenaueriano e da fase desenvolvimentista porque a Alemanha passou nas últimas décadas, revelando as dependências e os logros sociais onde se perde e os comportamentos estereotipados com que busca atingir um pretenso “paradisíaco” bem-estar económico.

 
Dorle e Wolf - Um Amor Alemão, uma das mais recentes ficções de Martin Walser, está, contudo, longe de ser uma das mais importantes obras deste autor. Esta novela centra-se numa personagem, Wolf Zieger, nascido na RDA, “fugido” para o ocidente alemão, e que trabalha como espião para o seu país de origem. Paralelamente, mantêm duas relações amorosas, uma efectiva, verdadeira, com a sua mulher, Dorle, outra com uma secretária, Sylvia, a quem, em troca de documentos militares pertencentes à NATO que ela lhe fornece, vai prestando, entre a repulsa e o fascínio, alguns “serviços” sexuais…

 
Mas o que é interessante neste romance são as motivações de actuação de Wolf Zieger: o objectivo da sua espionagem é procurar eliminar o desequilíbrio informativo entre os dois lados, transmitindo dados técnicos e científicos do mais evoluído para o mais carenciado, e tentando, assim, apaziguar a arrogância conflituosa que as diversas potências mundiais injectaram nas duas Alemanhas, levando-as a viver de costas voltadas e a afastarem-se cada vez mais uma da outra. Em resumo, e de uma forma paradoxal, a actuação de Wolf Zieger é orientada por um sentido (um pouco ingénuo) “nacional e patriótico”.

 
Mas o comportamento desta personagem permite a Martin Walser colocar em situação, mesmo que de uma forma historicamente enfatizada, a dimensão existencial do drama nacional alemão. Toda a vida de Wolf Zieger sofre com a cisão alemã, vive em cisão: a sua relação com os outros desliza entre dois “quereres inconciliáveis”, estabelecendo-se a presença de um sobre a ocultação do outro e sempre perante o objecto querido errado. Daí que seja perante Sylvia que Wolf mais deseje Dorle; daí que Wolf encare os seus concidadãos como seres divididos, só parcialmente visíveis e amáveis.

 
A pouco e pouco, no entanto, Wolf Ziegler toma consciência de que o seu desejo de conciliar as duas faces do destino alemão é não só uma causa perdida, mas também insensata, que levará à perca da sua identidade e a um limbo de não-existência: Wolf percebe que a sua relação com Dorle desmorona, e perante esta situação, resolve abdicar de uma das suas partes, resignando-se a viver apenas com uma delas. Para isso, entrega-se às autoridades da RFA, encerrando assim um ciclo da sua vida; e é perante a plena satisfação do seu juiz, que o encara como uma espécie que já devia estar extinta, que Wolf inicia o trabalho de luto pela parte de si que abandonou, intensificando a sua relação com Dorle e recusando a presença de Sylvia.

 
Dorle e Wolf- Um Amor Alemão revela-se, portanto, como uma parábola pessimista que pretende transmitir, de um modo dramático (e através dessa dramatização tornar bem explicito aquilo que todos os alemães sabem no seu íntimo), a certeza de um facto que, para a geração de Martin Walser, é, em termos existenciais, inadmissível: a Alemanha morreu.

 
Publicado no Expresso em 1988.
 
(Foto do Autor de Patrick Seeger)

 

Título: Dorle e Wolf – Um Amor Alemão
Autor: Martin Walser
Tradução: Ana Maria Carvalho
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
181 págs., € 4,03


 

 




terça-feira, 13 de agosto de 2013

MARGRIET DE MOOR


 
 
 

O CANTO E A PELE

 Quem se interessa pelo futuro da edição e do livro, e acompanha esta problemática um pouco mais atentamente em termos internacionais, sabe que a Holanda é, nesta matéria, um caso modelar, em particular quando se tem em consideração o número de falantes da língua flamenga e as potencialidades circunscritas do seu mercado editorial: índices de hábitos de leitura e de aquisição bastante elevados, uma edição com uma oferta muito diversificada, onde se destaca um número expressivo de obras de autores nacionais em plena actividade e, entre estes, uma significativa percentagem anual de novos autores e, em complemento, uma atenção à produção editorial internacional que espantaria o leitor português. Enfim, uma situação que, tendo decerto algumas possíveis deficiências, transmite uma imagem “optimista” do futuro da edição e do livro. Porém, e há que o realçar, é evidente que esta situação é consequência natural de estarem resolvidos na Holanda, de um modo consistente, os problemas estruturais da educação e da cultura…

 

No continuado e intenso esforço que as instituições públicas flamengas têm feito para divulgar a sua literatura em termos internacionais, coube agora a Portugal a sorte de ter acesso a um conjunto de autores que integra alguns dos mais recentes e interessantes da actual literatura em língua flamenga. E, dentro destes, cabe-me realçar Margriet de Moor que, ao terceiro livro de ficção, conseguiu obter, tanto na Holanda como no exterior, uma merecida consagração. As Ed. Asa decidiram traduzir O Virtuoso, último romance desta autora que começou a publicar tardiamente, depois de se ter dedicado à actividade musical e à história da arte, e cujos conhecimentos são bem visíveis, e fundamentais, nesta obra.

 
O Virtuoso narra uma belíssima história de paixão de uma jovem aristocrática do sul da Itália por um “castrati” no séc. XVIII. Porém, através desta história transparece, antes do mais, uma fascinante imagem da sociedade aristocrática napolitana desta época, dominada por um contínuo jogo de máscaras e simulações, de sombras nocturnas e de luz, num obsessivo e requintado império dos sentidos que parece mergulhar os corpos num tão inebriante prazer que provoca a desagregação da própria identidade sexual.

 
Um dos elementos fulcrais deste romance é a identificação do “canto” com a sensualidade. Isto é, não só se considera que o principal efeito do “belo-canto” sobre o outro é propiciar o seu despertar erótico, mas também que emana de uma energia física que, ao procurar a plena sedução, impõe, por isso, o árduo esforço que leva à perfeição. Para a autora, este princípio é notório na arte do canto, mas transparece a ideia de que pode ser aplicado a qualquer ofício, deixando vislumbrar a conclusão de que a capacidade criativa e de trabalho é variável de acordo com a intensidade do desejo de cada um e que a beleza é sempre resultante dessa capacidade que, por essência, se torna erótica.

 
Porém, e regressando ao “canto”, entende-se que a sensualidade, que ele provoca, erotiza todo o corpo, desfuncionalizando o sexo, ou seja, deixando-o como simples elemento integrante de uma sexualidade que atinge a dimensão de toda a pele. E, por conseguinte, essa erotização do corpo procura a sua plena satisfação tanto em si como no ser amado, secundarizando a identidade sexual deste e respondendo privilegiadamente ao poder de atracção com que a beleza consegue transfigurar um determinado momento. É evidente que a figura de Gasparo Conti, o virtuoso “castrati”, torna-se perfeita, porque corporiza de um modo fácil, pela sua situação, esta perspectiva da sexualidade, tanto mais que impõe à sua amante, em resposta à sua voz, uma “arte” de sedução de valor equiparável.

 
Convém, por fim, salientar que estes momentos de paixão são assumidos em O Virtuoso como o mais perecível e, ao mesmo tempo, como o mais essencial da existência. Quer isto dizer, que toda a existência é encarada na dimensão etérea do canto, o que não exclui a tragicidade do sofrimento nem uma certa fidelidade ao prazer e à beleza.

 
Mas a qualidade deste romance de Margriet de Moor provém, decerto, do seu estilo. A autora procurou, de um modo coerente, aproximar o seu estilo ao canto, isto é, em que a evolução narrativa se justifica em exclusivo pela emoção das personagens (e com que se procura envolver o leitor), da mesma forma que a única lógica em que assenta uma área cantada é a necessidade expressiva da emoção. Por isso, todo o romance é constituído, dentro de um rigoroso quadro cenográfico, por momentos fugazes, vislumbres de corpos e desejos, situações de prazer e mágoa, progredindo por saltos, conforme se encadeiam e associam tonalidades sensitivas. O resultado é um romance intenso em termos estéticos e, ao mesmo tempo, de uma leveza que nos faz recordar uma máxima fundamental da aprendizagem da vida: nada há mais denso e íntimo do que a pele.  

                                                                                                        
Publicado no Público em 1997.

 

Título: O Virtuoso
Autor: Margriet de Moor
Tradução (a partir do alemão): Fátima Freire de Andrade
Editor: Edições Asa
Ano: 1997
173 págs., € 5,00


 



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

ROBERT MUSIL

 
 
 

 A ARTE PRENUNCIATÓRIA

 
Para quem lê hoje O Jovem Törless, uma das constatações mais assombrantes é a modernidade do estilo e, em particular, da problemática deste romance com que, há mais de oitenta anos, o jovem Robert Musil iniciou a sua carreira literária. Provavelmente será uma pretensão inútil procurar uma explicação para este facto. Mas se alguma houver, só poderemos encontrá-la na efervescência intelectual, artística e científica de Viena do princípio do século, esse cadinho único que transformou de um modo radical toda a cultura contemporânea.


Viena era a capital de um exangue Império Austro-Húngaro e vivia então uma época com os contrastes típicos de “fin-de-siècle”. O Estado, obcecado com uma política imperialista que pretendia hegemonizar os Balcãs, não percebia que a crescente afirmação autonómica das suas nacionalidades o iria transformar numa pálida lembrança de grandeza e glória. A classe dominante, em redor do patriarca Francisco José de Habsburgo, convicta dos seus princípios de honra e de ordem militar, vivia, num luxuoso requinte palaciano, de todo alheada dos clamores proletários que vinham da indústria nascente. Mas é também na capital deste decadente Império que aparecerá uma burguesia de apurado gosto estético, mundana e informada, onde irá germinar uma excepcional elite intelectual: os nomes de Hoffmansthal, Schnitzler, Kraus, Freud, Schonberg e Klimt são disso exemplo.

 
Foi este romance (cuja tradução rigorosa do título alemão o deveria fazer chamar, em português, As Perturbações do Pupilo Törless) que deu origem ao imediato reconhecimento de Robert Musil por essa elite. Mas ainda se estava longe das interpretações que este romance haveria de receber, após a morte do autor e da publicação de O Homem sem Qualidades, e que o consideraram como “prenunciatório”… tal era a compreensão que possibilitava do comportamento dos carrascos do III Reich.

 
 Mas de que trata O Jovem Törless? Da formação de um jovem colegial, da consciencialização da sua sensualidade, do início das suas interrogações éticas e metafísicas. Esse processo de formação do jovem Törless atinge, no entanto, um ponto crítico numa situação-limite em que profundamente se envolve: ele e mais dois colegas, descobrindo que um outro aluno, Basini, rouba dinheiro do armário dos seus colegas, decidem não o denunciar, mas exercer sobre ele uma série de represálias, colocando-o ao seu serviço e estabelecendo uma relação perversa em que os três procuram saber até que ponto vai a capacidade de humilhação e a cobardia de Basini.

 
Mas o que interessa a Robert Musil não é só como se criam relações de poder intersubjectivas, nem quais as circunstâncias que levam uma estrutura caracterial “fragilizada” a tornar-se objecto de uma rede de dependências e sujeições que os outros aproveitam. A interrogação de O Jovem Törless é de ordem metafísica: partindo da consciência crescente do seu corpo e da sua relação com a Natureza, Törless procura conhecer a especificidade da sua alma e os seus contornos e só nesse sentido lhe interessa saber como é que Basini irá reagir ao seu destino.

 
Esta busca desencadeia-se no momento em que, estando o jovem Törless afastado da família por causa do internato, se sente invadido por uma intensa melancolia que o predispõe a uma visão perturbante: atraído pela sensualidade exposta da prostituta Bozena, pressente nesta uma face oculta da sua própria mãe e semelhante identificação provoca-lhe, como reacção, uma enorme repulsa por “esta dimensão” de si.

 
É a descoberta dessa dimensão que permite a Törless compreender que existe “também nele” um indefinível Basini. E é por isso que, de um imediato repúdio, por razões éticas e sociais, Törless passa a uma fase em que pretende compreendê-lo, e depois, quando percebe que existe em Basini qualquer coisa em comum ou em estreita consonância com a sua própria sensualidade, se deixa deslizar para o deleite de uma relação homossexual.

 
Com esta relação, Törless consegue perceber claramente que existe uma enorme proximidade ética entre o comportamento indigno de Basini e a actuação dos seus colegas torcionários. E só demarcando-se desta é que Törless consegue estabelecer a “coexistência pacífica” entre as dimensões ambivalentes da sua alma.

 
No íntimo, Törless consciencializa então uma relação de poder entre uma dimensão ética e racional da sua alma sobre outra, emotiva e sensorial, e é desta forma que consegue atingir alguma autonomia em relação ao outro que existe em si e o fragiliza (repare-se na proximidade desta problemática com a reflexão científica que um prestigiado conterrâneo do autor, Sigmund Freud, desenvolvia por esta altura). Torna-se por isso claro que, para Robert Musil, só aceitando em nós a força obscura do desejo, se atinge a serenidade adulta de compreender os outros como certa dimensão de nós próprios.

 
Saliente-se, por fim, que um dos aspectos mais fascinantes na obra de Robert Musil é o de transmitir estilisticamente a ideia de que o romance se produz em frente do leitor. Semelhante efeito resulta da sua própria concepção da literatura (e onde Milan Kundera foi, de certo modo, fundamentar a sua produção romanesca) que entende o romance como uma forma específica de conhecimento e que ele próprio deverá espelhar esse acto, através da explicitação dos seus tacteamentos e do seu sinuoso caminho pelo meio da obscuridade.

 
Além disso, O Jovem Törless está ainda repleto de apontamentos realistas, que o autor irá abandonar na sua posterior ficção, e de uma minuciosa e subtil observação psicológica, que acentua o carácter de inquirição, subjectiva e inquieta, desta obra. Esperemos que o leitor se deixe envolver neste contínuo serpentear de interrogações e perplexidades de O Jovem Törless, pois irá entender, ao longo destas páginas, por que motivo esta obra é reconhecidamente considerada um dos mais estimulantes clássicos da literatura contemporânea.

 
Publicado no Expresso em 1987.

 

Título: O Jovem Törless
Autor: Robert Musil
Tradutor: João Filipe Ferreira
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1987
246 págs., € 6,34