OS AFECTOS CISMÁTICOS
Mesmo tendo em conta os inúmeros
trabalhos ensaísticos, as permanentes referências e indicações que, nos últimos
anos e um pouco por toda a parte, têm sido publicados sobre a “questão do romance
como forma específica de conhecimento”, um bom romance pode (e deve) contribuir
para reavaliar e redimensionar algumas perspectivas do campo teórico. De facto,
certos romances revelam bem a força da arte encantatória da narrativa ficcionista
e demonstram, sem equívocos, como o romance pode ser, ao colocar em situação
determinadas problemáticas, uma outra via de atingir, nem que seja de forma provisória,
o âmago das coisas.
Fundamenta bem esta questão a
primeira obra traduzida de Martin Walser, com o título de Dorle e Wolf – Um Amor Alemão.
Martin Walser é, com Günter
Grass, Heirinch Böll, Hans Magnus Enzensberger e Ingeborg Bachman (esta de
origem austríaca), um dos elementos determinantes do conhecido Grupo 47 que,
durante cerca de vinte anos, procurou transformar em profundidade a língua literária
alemã, de modo a libertá-la da retórica com que a tinha modelado o império nazi.
Este autor, conhecido como dramaturgo e romancista, obteve alguns dos mais importantes
prémios literários alemães (entre os quais, o outorgado pelo próprio Grupo 47 e
o Prémio Herman Hesse) e possui uma já vasta obra, onde saliento os romances Ehen
in Philippsburg, Seelenarbeit, Liebeserklärungen e Ein
fliehendes Pferd (Um Cavalo em Fuga). De uma forma genérica, e sempre abusiva,
pode afirmar-se que esta obra pretende caracterizar o mal-estar do homem alemão,
nos contextos do período pós-guerra adenaueriano e da fase desenvolvimentista porque
a Alemanha passou nas últimas décadas, revelando as dependências e os logros sociais
onde se perde e os comportamentos estereotipados com que busca atingir um pretenso
“paradisíaco” bem-estar económico.
Dorle e Wolf - Um Amor Alemão, uma das mais recentes ficções
de Martin Walser, está, contudo, longe de ser uma das mais importantes obras deste
autor. Esta novela centra-se numa personagem, Wolf Zieger, nascido na RDA, “fugido”
para o ocidente alemão, e que trabalha como espião para o seu país de origem. Paralelamente,
mantêm duas relações amorosas, uma efectiva, verdadeira, com a sua mulher, Dorle,
outra com uma secretária, Sylvia, a quem, em troca de documentos militares pertencentes
à NATO que ela lhe fornece, vai prestando, entre a repulsa e o fascínio, alguns
“serviços” sexuais…
Mas o que é interessante neste
romance são as motivações de actuação de Wolf Zieger: o objectivo da sua espionagem
é procurar eliminar o desequilíbrio informativo entre os dois lados, transmitindo
dados técnicos e científicos do mais evoluído para o mais carenciado, e tentando,
assim, apaziguar a arrogância conflituosa que as diversas potências mundiais
injectaram nas duas Alemanhas, levando-as a viver de costas voltadas e a
afastarem-se cada vez mais uma da outra. Em resumo, e de uma forma paradoxal, a
actuação de Wolf Zieger é orientada por um sentido (um pouco ingénuo) “nacional e
patriótico”.
Mas o comportamento desta
personagem permite a Martin Walser colocar em situação, mesmo que de uma forma historicamente
enfatizada, a dimensão existencial do drama nacional alemão. Toda a vida de Wolf
Zieger sofre com a cisão alemã, vive em cisão: a sua relação com os outros
desliza entre dois “quereres inconciliáveis”, estabelecendo-se a presença de um
sobre a ocultação do outro e sempre perante o objecto querido errado. Daí que
seja perante Sylvia que Wolf mais deseje Dorle; daí que Wolf encare os seus
concidadãos como seres divididos, só parcialmente visíveis e amáveis.
A pouco e pouco, no entanto, Wolf
Ziegler toma consciência de que o seu desejo de conciliar as duas faces do destino
alemão é não só uma causa perdida, mas também insensata, que levará à perca da
sua identidade e a um limbo de não-existência: Wolf percebe que a sua relação
com Dorle desmorona, e perante esta situação, resolve abdicar de uma das suas
partes, resignando-se a viver apenas com uma delas. Para isso, entrega-se às
autoridades da RFA, encerrando assim um ciclo da sua vida; e é perante a plena
satisfação do seu juiz, que o encara como uma espécie que já devia estar
extinta, que Wolf inicia o trabalho de luto pela parte de si que abandonou,
intensificando a sua relação com Dorle e recusando a presença de Sylvia.
Dorle e Wolf- Um Amor Alemão revela-se, portanto, como uma parábola
pessimista que pretende transmitir, de um modo dramático (e através dessa
dramatização tornar bem explicito aquilo que todos os alemães sabem no seu íntimo),
a certeza de um facto que, para a geração de Martin Walser, é, em termos existenciais,
inadmissível: a Alemanha morreu.
Publicado no Expresso em 1988.
(Foto do Autor de Patrick Seeger)
Título: Dorle e Wolf – Um Amor Alemão
Autor: Martin Walser
Tradução: Ana Maria Carvalho
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
181 págs., € 4,03