terça-feira, 13 de agosto de 2013

MARGRIET DE MOOR


 
 
 

O CANTO E A PELE

 Quem se interessa pelo futuro da edição e do livro, e acompanha esta problemática um pouco mais atentamente em termos internacionais, sabe que a Holanda é, nesta matéria, um caso modelar, em particular quando se tem em consideração o número de falantes da língua flamenga e as potencialidades circunscritas do seu mercado editorial: índices de hábitos de leitura e de aquisição bastante elevados, uma edição com uma oferta muito diversificada, onde se destaca um número expressivo de obras de autores nacionais em plena actividade e, entre estes, uma significativa percentagem anual de novos autores e, em complemento, uma atenção à produção editorial internacional que espantaria o leitor português. Enfim, uma situação que, tendo decerto algumas possíveis deficiências, transmite uma imagem “optimista” do futuro da edição e do livro. Porém, e há que o realçar, é evidente que esta situação é consequência natural de estarem resolvidos na Holanda, de um modo consistente, os problemas estruturais da educação e da cultura…

 

No continuado e intenso esforço que as instituições públicas flamengas têm feito para divulgar a sua literatura em termos internacionais, coube agora a Portugal a sorte de ter acesso a um conjunto de autores que integra alguns dos mais recentes e interessantes da actual literatura em língua flamenga. E, dentro destes, cabe-me realçar Margriet de Moor que, ao terceiro livro de ficção, conseguiu obter, tanto na Holanda como no exterior, uma merecida consagração. As Ed. Asa decidiram traduzir O Virtuoso, último romance desta autora que começou a publicar tardiamente, depois de se ter dedicado à actividade musical e à história da arte, e cujos conhecimentos são bem visíveis, e fundamentais, nesta obra.

 
O Virtuoso narra uma belíssima história de paixão de uma jovem aristocrática do sul da Itália por um “castrati” no séc. XVIII. Porém, através desta história transparece, antes do mais, uma fascinante imagem da sociedade aristocrática napolitana desta época, dominada por um contínuo jogo de máscaras e simulações, de sombras nocturnas e de luz, num obsessivo e requintado império dos sentidos que parece mergulhar os corpos num tão inebriante prazer que provoca a desagregação da própria identidade sexual.

 
Um dos elementos fulcrais deste romance é a identificação do “canto” com a sensualidade. Isto é, não só se considera que o principal efeito do “belo-canto” sobre o outro é propiciar o seu despertar erótico, mas também que emana de uma energia física que, ao procurar a plena sedução, impõe, por isso, o árduo esforço que leva à perfeição. Para a autora, este princípio é notório na arte do canto, mas transparece a ideia de que pode ser aplicado a qualquer ofício, deixando vislumbrar a conclusão de que a capacidade criativa e de trabalho é variável de acordo com a intensidade do desejo de cada um e que a beleza é sempre resultante dessa capacidade que, por essência, se torna erótica.

 
Porém, e regressando ao “canto”, entende-se que a sensualidade, que ele provoca, erotiza todo o corpo, desfuncionalizando o sexo, ou seja, deixando-o como simples elemento integrante de uma sexualidade que atinge a dimensão de toda a pele. E, por conseguinte, essa erotização do corpo procura a sua plena satisfação tanto em si como no ser amado, secundarizando a identidade sexual deste e respondendo privilegiadamente ao poder de atracção com que a beleza consegue transfigurar um determinado momento. É evidente que a figura de Gasparo Conti, o virtuoso “castrati”, torna-se perfeita, porque corporiza de um modo fácil, pela sua situação, esta perspectiva da sexualidade, tanto mais que impõe à sua amante, em resposta à sua voz, uma “arte” de sedução de valor equiparável.

 
Convém, por fim, salientar que estes momentos de paixão são assumidos em O Virtuoso como o mais perecível e, ao mesmo tempo, como o mais essencial da existência. Quer isto dizer, que toda a existência é encarada na dimensão etérea do canto, o que não exclui a tragicidade do sofrimento nem uma certa fidelidade ao prazer e à beleza.

 
Mas a qualidade deste romance de Margriet de Moor provém, decerto, do seu estilo. A autora procurou, de um modo coerente, aproximar o seu estilo ao canto, isto é, em que a evolução narrativa se justifica em exclusivo pela emoção das personagens (e com que se procura envolver o leitor), da mesma forma que a única lógica em que assenta uma área cantada é a necessidade expressiva da emoção. Por isso, todo o romance é constituído, dentro de um rigoroso quadro cenográfico, por momentos fugazes, vislumbres de corpos e desejos, situações de prazer e mágoa, progredindo por saltos, conforme se encadeiam e associam tonalidades sensitivas. O resultado é um romance intenso em termos estéticos e, ao mesmo tempo, de uma leveza que nos faz recordar uma máxima fundamental da aprendizagem da vida: nada há mais denso e íntimo do que a pele.  

                                                                                                        
Publicado no Público em 1997.

 

Título: O Virtuoso
Autor: Margriet de Moor
Tradução (a partir do alemão): Fátima Freire de Andrade
Editor: Edições Asa
Ano: 1997
173 págs., € 5,00


 



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