O CANTO E A
PELE
No
continuado e intenso esforço que as instituições públicas flamengas têm feito
para divulgar a sua literatura em termos internacionais, coube agora a Portugal
a sorte de ter acesso a um conjunto de autores que integra alguns dos mais recentes
e interessantes da actual literatura em língua flamenga. E, dentro destes,
cabe-me realçar Margriet de Moor que, ao terceiro livro de ficção, conseguiu
obter, tanto na Holanda como no exterior, uma merecida consagração. As Ed. Asa
decidiram traduzir O Virtuoso, último romance desta autora que começou a publicar
tardiamente, depois de se ter dedicado à actividade musical e à história da
arte, e cujos conhecimentos são bem visíveis, e fundamentais, nesta obra.
O Virtuoso narra uma
belíssima história de paixão de uma jovem aristocrática do sul da Itália por um
“castrati” no séc. XVIII. Porém, através desta história transparece, antes do
mais, uma fascinante imagem da sociedade aristocrática napolitana desta época,
dominada por um contínuo jogo de máscaras e simulações, de sombras nocturnas e
de luz, num obsessivo e requintado império dos sentidos que parece mergulhar os
corpos num tão inebriante prazer que provoca a desagregação da própria
identidade sexual.
Um dos
elementos fulcrais deste romance é a identificação do “canto” com a
sensualidade. Isto é, não só se considera que o principal efeito do
“belo-canto” sobre o outro é propiciar o seu despertar erótico, mas também que
emana de uma energia física que, ao procurar a plena sedução, impõe, por
isso, o árduo esforço que leva à perfeição. Para a autora, este princípio é notório na
arte do canto, mas transparece a ideia de que pode ser aplicado a
qualquer ofício, deixando vislumbrar a conclusão de que a capacidade criativa e
de trabalho é variável de acordo com a intensidade do desejo de cada um e que a
beleza é sempre resultante dessa capacidade que, por essência, se torna erótica.
Porém, e
regressando ao “canto”, entende-se que a sensualidade, que ele provoca, erotiza
todo o corpo, desfuncionalizando o sexo, ou seja, deixando-o como simples
elemento integrante de uma sexualidade que atinge a dimensão de toda a pele. E,
por conseguinte, essa erotização do corpo procura a sua plena satisfação tanto
em si como no ser amado, secundarizando a identidade sexual deste e respondendo
privilegiadamente ao poder de atracção com que a beleza consegue transfigurar
um determinado momento. É evidente que a figura de Gasparo Conti, o virtuoso “castrati”,
torna-se perfeita, porque corporiza de um modo fácil, pela sua situação, esta
perspectiva da sexualidade, tanto mais que impõe à sua amante, em resposta à
sua voz, uma “arte” de sedução de valor equiparável.
Convém, por
fim, salientar que estes momentos de paixão são assumidos em O
Virtuoso como o mais perecível e, ao mesmo tempo, como o mais essencial
da existência. Quer isto dizer, que toda a existência é encarada na dimensão etérea
do canto, o que não exclui a tragicidade do sofrimento nem uma certa fidelidade
ao prazer e à beleza.
Mas a
qualidade deste romance de Margriet de Moor provém, decerto, do seu estilo. A
autora procurou, de um modo coerente, aproximar o seu estilo ao canto, isto é,
em que a evolução narrativa se justifica em exclusivo pela emoção das
personagens (e com que se procura envolver o leitor), da mesma forma que a
única lógica em que assenta uma área cantada é a necessidade expressiva da
emoção. Por isso, todo o romance é constituído, dentro de um rigoroso quadro
cenográfico, por momentos fugazes, vislumbres de corpos e desejos, situações de
prazer e mágoa, progredindo por saltos, conforme se encadeiam e associam
tonalidades sensitivas. O resultado é um romance intenso em termos estéticos e,
ao mesmo tempo, de uma leveza que nos faz recordar uma máxima fundamental da
aprendizagem da vida: nada há mais denso e íntimo do que a pele.
Publicado no
Público em 1997.
Título: O Virtuoso
Autor: Margriet de Moor
Tradução (a
partir do alemão): Fátima Freire de
Andrade
Editor: Edições Asa
Ano: 1997
173 págs., €
5,00
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