Viena era a capital de um
exangue Império Austro-Húngaro e vivia então uma época com os contrastes típicos de “fin-de-siècle”.
O Estado, obcecado com uma política imperialista que pretendia hegemonizar os
Balcãs, não percebia que a crescente afirmação autonómica das suas nacionalidades
o iria transformar numa pálida lembrança de grandeza e glória. A classe dominante,
em redor do patriarca Francisco José de Habsburgo, convicta dos seus princípios
de honra e de ordem militar, vivia, num luxuoso requinte palaciano, de todo alheada dos clamores proletários que vinham da indústria nascente. Mas é também
na capital deste decadente Império que aparecerá uma burguesia de apurado gosto estético,
mundana e informada, onde irá germinar uma excepcional elite intelectual: os nomes
de Hoffmansthal, Schnitzler, Kraus, Freud, Schonberg e Klimt são disso exemplo.
Foi este romance (cuja tradução
rigorosa do título alemão o deveria fazer chamar, em português, As Perturbações
do Pupilo Törless) que deu origem ao imediato reconhecimento de Robert
Musil por essa elite. Mas ainda se estava longe das interpretações que este
romance haveria de receber, após a morte do autor e da publicação de O
Homem sem Qualidades, e que o consideraram como “prenunciatório”… tal era
a compreensão que possibilitava do comportamento dos carrascos do III Reich.
Mas o que interessa a Robert
Musil não é só como se criam relações de poder intersubjectivas, nem quais as
circunstâncias que levam uma estrutura caracterial “fragilizada” a tornar-se
objecto de uma rede de dependências e sujeições que os outros aproveitam. A
interrogação de O Jovem Törless é de ordem metafísica: partindo da consciência
crescente do seu corpo e da sua relação com a Natureza, Törless procura
conhecer a especificidade da sua alma e os seus contornos e só nesse sentido
lhe interessa saber como é que Basini irá reagir ao seu destino.
Esta busca desencadeia-se no
momento em que, estando o jovem Törless afastado da família por causa do
internato, se sente invadido por uma intensa melancolia que o predispõe a uma
visão perturbante: atraído pela sensualidade exposta da prostituta Bozena,
pressente nesta uma face oculta da sua própria mãe e semelhante identificação
provoca-lhe, como reacção, uma enorme repulsa por “esta dimensão” de si.
É a descoberta dessa dimensão
que permite a Törless compreender que existe “também nele” um indefinível Basini.
E é por isso que, de um imediato repúdio, por razões éticas e sociais, Törless
passa a uma fase em que pretende compreendê-lo, e depois, quando percebe que
existe em Basini qualquer coisa em comum ou em estreita consonância com a sua própria
sensualidade, se deixa deslizar para o deleite de uma relação homossexual.
Com esta relação, Törless
consegue perceber claramente que existe uma enorme proximidade ética entre o comportamento
indigno de Basini e a actuação dos seus colegas torcionários. E só demarcando-se desta é que Törless consegue estabelecer a “coexistência pacífica” entre as
dimensões ambivalentes da sua alma.
No íntimo, Törless
consciencializa então uma relação de poder entre uma dimensão ética e racional
da sua alma sobre outra, emotiva e sensorial, e é desta forma que consegue atingir
alguma autonomia em relação ao outro que existe em si e o fragiliza (repare-se
na proximidade desta problemática com a reflexão científica que um prestigiado
conterrâneo do autor, Sigmund Freud, desenvolvia por esta altura). Torna-se por
isso claro que, para Robert Musil, só aceitando em nós a força obscura do
desejo, se atinge a serenidade adulta de compreender os outros como certa
dimensão de nós próprios.
Saliente-se, por fim, que um dos
aspectos mais fascinantes na obra de Robert Musil é o de transmitir
estilisticamente a ideia de que o romance se produz em frente do leitor.
Semelhante efeito resulta da sua própria concepção da literatura (e onde Milan
Kundera foi, de certo modo, fundamentar a sua produção romanesca) que entende o
romance como uma forma específica de conhecimento e que ele próprio deverá espelhar
esse acto, através da explicitação dos seus tacteamentos e do seu sinuoso
caminho pelo meio da obscuridade.
Além disso, O Jovem Törless está
ainda repleto de apontamentos realistas, que o autor irá abandonar na sua posterior
ficção, e de uma minuciosa e subtil observação psicológica, que acentua o carácter
de inquirição, subjectiva e inquieta, desta obra. Esperemos que o leitor se
deixe envolver neste contínuo serpentear de interrogações e perplexidades de O Jovem
Törless, pois irá entender, ao longo destas páginas, por que motivo
esta obra é reconhecidamente considerada um dos mais estimulantes clássicos da
literatura contemporânea.
Publicado no Expresso em 1987.
Título: O Jovem Törless
Autor: Robert Musil
Tradutor: João Filipe Ferreira
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1987
246 págs., € 6,34
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