AS PORTAS DO MUNDO ADULTO
Em
princípios de setenta, quando apareceu The Book of Daniel de E. L. Doctorow,
a crítica americana ficou muito bem impressionada com este romance, porque
conseguia colocar implícitas preocupações militantes (o tema era - mais uma vez
- o caso Rosenberg) numa perspectiva original. O romance centra-se no filho
desse casal de cientistas que resolve encetar, dez anos após o famoso julgamento,
uma investigação com o intuito de perceber como é que a argumentação judicial destruiu
em termos psicológicos os seus pais. Com esta estratégia, The Book of Daniel
transmitia toda a perspectiva “interior” do drama dos Rosenberg,
revelando, com maior acutilância, a dimensão brutal da situação sociopolítica
que os envolveu. E. L. Doctorow iniciava, desse modo, a fase de maturidade da
sua obra, onde, na sequência do trabalho de John Dos Passos, procurava problematizar
as relações entre ficção e História. De seguida, vai desenvolver esta
problemática em Ragtime, o seu romance mais conhecido, em consequência do filme
homónimo de Milos Forman, em que associa personagens de ficção e figuras reais
e cria, num jogo desmistificador e humorado, relações plausíveis entre estas,
dando, ao mesmo tempo, um retrato inovador e estimulante dos anos vinte americanos.
O que se pretendia, era, mais uma vez, “inventar a História” para melhor
revelar a verdadeira História.
Nos
últimos tempos, a obra de E. L. Doctorow tem-se orientado para a tentativa de
estabelecer correlações entre história pessoal e história colectiva, fazendo um
levantamento diversificado dos parâmetros culturais, das linguagens e dos mitos
de várias épocas contemporâneas. É este o sentido de livros como Lives
of Poets e, em particular, de Feira Mundial, agora traduzido.
Este
romance, explicitamente autobiográfico, narra a infância do autor até aos dez
anos, terminando quando já é previsível a participação americana na II Guerra Mundial.
É, pois, um romance sobre o crescimento e a formação, em que se procura expor
as interrogações e a gradual penetração do olhar de uma criança no universo
adulto. Por conseguinte, o romance é construído como um diálogo de olhares
entre a personagem principal e os seus parentes mais próximos, realçando-se,
assim, uma diferença de pontos de vista resultante, antes do mais, de uma nova formulação
de regras, de construção de outras linguagens, de identificação com outros
mitos. Para esta criança, é a dolorosa confirmação de que uma personalidade
distinta só se obtém, como sempre, com a afirmação pública da sua “fala” (a
redacção que é premiada com uma menção honrosa no concurso da Feira Mundial),
com o desvendamento em si próprio dessa dimensão oculta dos adultos que é a
sexualidade e com a consciência eufórica de que se é possuidor de um futuro próprio
(é essa a descoberta que a criança faz entre os pavilhões da Feira Mundial).
A
História aparece aqui como o cenário de um passado pessoal que, ao condicioná-lo,
o constrói a seu modo. Por isso, a criança de Feira Mundial entende,
por fim, que as pessoas são, antes do mais, resultado do profundo imbricamento
da História com a história individual; ninguém em particular pode ser apontado
como culpado da inconstância e do aventureirismo do seu pai, da amargura e do
desencanto da sua mãe, da frustração e da fuga do seu irmão: cada um deles carrega
apenas um destino resultante de circunstâncias, externas e internas, impossíveis
- provavelmente - de dominar.
Como
já era bem notório noutros romances de E. L. Doctorow, como Ragtime,
Feira
Mundial revela uma enorme sobriedade e elegância de estilo, assim como
um admirável saber narrativo em encadear as situações e dar-lhes verosimilhança.
Mas, considerando outros aspectos, é inegável que o romance fica bem aquém do
que a anterior obra do autor permitia esperar. Admira, por exemplo, que, na sua
estrutura, nada transpareça sobre as analogias metodológicas que existem entre
a reconstrução do passado pessoal e a da História, nem, em particular, sobre a
dimensão que, em qualquer delas, existe de ficção: é já hoje inadmissível um
optimismo tão ingénuo sobre o papel da memória. Talvez, por isso, o romance
permaneça quase sempre numa certa platitude insignificante que o torna monótono.
Publicado no Público em
1991.
Titulo: Feira Mundial
Autor: E. L. Doctorow
Tradução: Ana
Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1991
371 págs., € 13,11
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