PRETENSÃO E
TEORIAS
Desde há
alguns anos, que se foi generalizando a “imagem” da literatura francesa
contemporânea como desinteressante, confusa e maçadora, de um formalismo
excessivo, solipsista e de temática medíocre, e tenta justificar-se esta “imagem”
pelo facto de os antigos “clercs” do pós-guerra e dos anos sessenta terem
desaparecido e não existirem novas figuras que os tenham substituído. Mas quem
acompanha de forma atenta o desenvolvimento desta literatura sabe que essa “imagem”
é bem injusta e não tem em consideração que a atmosfera cultural do mundo se
alterou profundamente nos últimos vinte anos e hoje os ventos sopram de forma
hegemónica vindos das terras anglo-saxónicas. E que esta circunstância óbvia
não retirou interesse à literatura francesa, só lhe retirou “visibilidade”.
No entanto,
qualquer argumentação em favor da cultura e da literatura francesas torna-se
sinceramente difícil em presença de livros como este O Princípio da Incerteza
de Michel Rio. Este escritor, que começou a publicar nos finais da década de
setenta, tem construído uma obra prolífera, mas caracterizada por uma
significativa irregularidade: alguns dos seus romances são estimulantes, lembro
os casos de Merlim e Tlacuílo
(também traduzidos e editados pela Ed. Teorema), ou ainda de Manhattan
Terminus e, segundo parece pela recepção que lhe fez a crítica
francesa, o muito recente La Statue de la Liberté; outros são,
de uma forma quase inexplicável, assombrosamente falhados, como é o caso deste
muito breve O Princípio da Incerteza. De qualquer modo, esta irregularidade
já permitiu perceber uma das principais tentações em que o autor por vezes cai,
fazendo desmoronar alguns dos seus romances: o gosto de Michel Rio pela
filosofia e pela teoria em geral faz com que as suas obras sejam muitas vezes
uma mera “exposição” de algumas problemáticas da actualidade, sem uma
verdadeira e coerente contribuição do autor, nem um elaborado e consistente
tratamento narrativo.
O Princípio
da Incerteza inicia-se
com uma situação onde um escritor, que desistiu de escrever, deambulando à
beira-mar, se sente, de súbito, fascinado por uma paisagem. E, perante a emoção
que esta paisagem lhe provoca, torna-se mais convicto no seu cepticismo sobre o
sentido do seu trabalho, reforçando-lhe a ideia de que o único sentido para a
existência é, depois de fruir o universo como um puro “voyeur”, “se diluir”
nele numa comunhão mortal.
Porém,
depois deste princípio relativamente aliciante, Michel Rio resolve efectuar uma
viragem no romance e iniciar, à maneira das novelas em diálogo filosófico de
Voltaire, um longo debate, entre o escritor e uma outra personagem, um velho
actor de cinema em situação de “reforma”, sobre temas como o significado do
acto de escrever e da arte, a figura de Deus, a relação entre a filosofia e a
ciência, a natureza do tempo, a física de Galileu e Newton e a de Hawking, o
pensamento e a matéria, o “Big-Bang” e
o destino do universo, o determinismo, o caos e a eternidade, etc., etc.,
ocupando mais de metade do romance com esta ininterrupta exposição de teorias e
ideias. É certo que o sentido deste diálogo é contextualizar a motivação que
levou o escritor a deixar de escrever, convencer o leitor da “impotência” da
criação humana perante as forças do universo e fundamentar a posição do escritor
em assumir-se como uma simples partícula de vida num jogo cósmico que não pode
dominar. Mas é necessário confessar que esta opção de Michel Rio não está de
modo algum bem resolvida e que O Princípio da Incerteza, durante
esta longa parte, mais parece uma obra de divulgação científica e filosófica, vagamente
romanceada, onde o autor se deleita em desfigurar-se numa pretensiosa
ostentação de saberes. Este pretensiosismo é tanto mais acentuado quanto está
associado a uma fácil sofisticação de ambientes, num preciosismo esteticista
que torna mais nítida a dimensão artificiosa dos diálogos e das situações.
No final, o
romance faz uma nova viragem e, através de uma situação de “rodagem”
cinematográfica, em que se está a recriar a situação anteriormente vivida entre
as duas personagens principais, procura-se analisar a relação interactiva entre
a arte e a vida, voltando-se de novo - mas aqui, sim, de forma romanesca - ao
ponto de partida filosófico do início do romance sobre o primado da vida sobre
a arte.
Os aspectos
mais interessantes de O Princípio da Incerteza confinam-se
a uma certa reflexão sobre o medo do fim (o fim da escrita, o fim dos afectos,
o fim da vida) e a uma perturbante associação entre o desejo de “diluição de si
na paisagem” como perfeito sentido da
existência e o desejo sexual como impulso para a “diluição de si no Outro”,
assumindo aqui o Outro uma unicidade cósmica. É evidente que esta concepção da
sexualidade, tal como aparece formulada no romance, tem uma excessiva e
questionável componente “masculina”. De qualquer forma, é nestas páginas que
perpassa uma certa “sensualidade” que faz recordar, neste aspecto, a obra de
André Pieyre de Mandiargues, e que evidencia as qualidades estilísticas que
Michel Rio já bem explanou noutras obras.
Publicado no
Público em 1997.
Título: O Princípio da Incerteza
Autor: Michel Rio
Tradutor: Magda Bigotte de Figueiredo
Editor: Ed. Teorema
Ano: 1997
101
págs., esg.
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