domingo, 2 de março de 2014

NATSUME SOSEKI





QUASE INÚTIL

 
Na segunda metade do séc. XIX, o Japão, na sequência de um atribulado processo social e político, que provocou a desagregação da antiga ordem feudal, abriu-se aos “encantos” do Ocidente: inicia a sua revolução industrial, cria um frágil parlamentarismo, consolida a sua abertura comercial e reforça o seu ascendente económico e político em todo o Extremo Oriente. A era Meiji - nome por que ficou conhecido este período – marca também, em termos culturais, o início do desaparecimento do Japão tradicional. Os escritores deste período, como Ogai Mori, Katai Tayama e Natsume Soseki – de quem uma nova editora traduziu a obra Através da Vidraça -,  com o  intuito de conseguir um estatuto mais digno para o romance, dedicam-se a estudar e a traduzir a literatura europeia, procurando “importar’ uma maior maleabilidade narrativa: foram estes os primeiros escritores a aproximar a sua produção das formas literárias ocidentais, caminho esse que, mau grado, bom grado, se prolongou até aos nossos dias e que permitiu que a geração seguinte, a de Ryunosuke Akutagawa, de Junichiro Tanizaki e Yasunari Kawabata, fosse mais facilmente reconhecida e consagrada no Ocidente.

 
Natsume Soseki, depois de ter estudado língua e literatura inglesas, vive alguns anos em Londres, a aprofundar os conhecimentos da literatura europeia e das recentes ciências humanas. De regresso ao Japão, ingressa na Universidade de Tóquio, onde elabora algumas obras sobre teoria e crítica literária. Publica a sua primeira narrativa em 1905-06, obtendo uma enorme popularidade (que ainda hoje parece perdurar); porém, é depois de abandonar o ensino que Soseki inicia a fase mais produtiva e conseguida da sua criação romanesca. De saúde frágil, vive os últimos anos com cíclicas crises gástricas que o deixam incapaz para trabalhar, morrendo em 1916, com menos de cinquenta anos.
 
As sua obras, publicadas quase todas em folhetim, foram sempre orientadas segundo uma exigência de sinceridade que motivou o autor a um permanente confronto com os modelos narrativos convencionais e com as técnicas estilísticas tradicionais: o resultado é, muitas vezes, um conjunto heteróclito de formas e estilos, desde o “haiku” ao monólogo, amalgamados na mesma obra. Não é estranha a estas experiências -  que se equilibram na fase de maturidade de Soseki -  a circunstância da profissionalização do escritor ser adquirida (como era habitual, nesta época, no Japão) através da colaboração jornalística. Muitas vezes, esta colaboração alternava entre o folhetim romanesco e a crónica, e este facto tem, na literatura japonesa e na obra de Soseki, uma importância que não é apenas anedótica: é que a crónica, pela forma pessoalizada como reflectia assuntos íntimos e públicos, contribuiu para dar uma nova capacidade expressiva à subjectividade e, por outro lado, para introduzir uma estética naturalista na abordagem das problemáticas da realidade social.

 
Através da Vidraça é um livro de crónicas. Mas crónicas que, como Soseki expõe no inicio da obra, são originadas por vivências pessoais: enclausurado pela doença, o autor busca, na memória ou em acontecimentos banais do presente, situações que exemplifiquem ou contribuam para reflectir sobre algumas das inquietações constantes e comuns a qualquer homem (o amor e o tempo, a amizade e a solidão, o envelhecimento e a infância, a doença e a morte).

 
Através da Vidraça está bem longe de ser uma das obras mais importantes de Soseki. E aqui tem de se salientar que os “vícios”, que enfermam esta edição, fazem dela um aberrante equívoco: primeiro, não só esta obra foi mal escolhida para introduzir o “interesse” por Soseki em Portugal, como a sua publicação, sem qualquer tipo de enquadramento, pouco ou nenhum sentido terá para o leitor português; segundo, é lamentável que não exista nenhuma referência sobre qual a língua que serviu de base à tradução; por fim, a indicação de género “romance”, na capa de uma colectânea de crónicas, faz desta edição uma condenável mistificação. Não há dúvida que é um lamentável começo para uma editora.
 

Publicado no Público em 1993.

 

 
Título: Através  da Vidraça
Autor: Natsume Soseki
Tradução e Notas: José Caselas
Editor: Usus Editora
133 págs.,  esg.

 



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