QUASE INÚTIL
Na
segunda metade do séc. XIX, o Japão, na sequência de um atribulado processo
social e político, que provocou a desagregação da antiga ordem feudal, abriu-se
aos “encantos” do Ocidente: inicia a sua revolução industrial, cria um frágil parlamentarismo,
consolida a sua abertura comercial e reforça o seu ascendente económico e político
em todo o Extremo Oriente. A era Meiji - nome por que ficou conhecido este período
– marca também, em termos culturais, o início do desaparecimento do Japão tradicional.
Os escritores deste período, como Ogai Mori, Katai Tayama e Natsume Soseki – de
quem uma nova editora traduziu a obra Através da Vidraça -, com o intuito
de conseguir um estatuto mais digno para o romance, dedicam-se a estudar e a
traduzir a literatura europeia, procurando “importar’ uma maior maleabilidade narrativa:
foram estes os primeiros escritores a aproximar a sua produção das formas literárias
ocidentais, caminho esse que, mau grado, bom grado, se prolongou até aos nossos
dias e que permitiu que a geração seguinte, a de Ryunosuke Akutagawa, de
Junichiro Tanizaki e Yasunari Kawabata, fosse mais facilmente reconhecida e
consagrada no Ocidente.
Natsume
Soseki, depois de ter estudado língua e literatura inglesas, vive alguns anos
em Londres, a aprofundar os conhecimentos da literatura europeia e das recentes
ciências humanas. De regresso ao Japão, ingressa na Universidade de Tóquio, onde
elabora algumas obras sobre teoria e crítica literária. Publica a sua primeira
narrativa em 1905-06, obtendo uma enorme popularidade (que ainda hoje parece perdurar);
porém, é depois de abandonar o ensino que Soseki inicia a fase mais produtiva e
conseguida da sua criação romanesca. De saúde frágil, vive os últimos anos com
cíclicas crises gástricas que o deixam incapaz para trabalhar, morrendo em 1916,
com menos de cinquenta anos.
As
sua obras, publicadas quase todas em folhetim, foram sempre orientadas segundo
uma exigência de sinceridade que motivou o autor a um permanente confronto com
os modelos narrativos convencionais e com as técnicas estilísticas
tradicionais: o resultado é, muitas vezes, um conjunto heteróclito de formas e
estilos, desde o “haiku” ao monólogo, amalgamados na mesma obra. Não é estranha
a estas experiências - que se equilibram
na fase de maturidade de Soseki - a circunstância
da profissionalização do escritor ser adquirida (como era habitual, nesta época,
no Japão) através da colaboração jornalística. Muitas vezes, esta colaboração
alternava entre o folhetim romanesco e a crónica, e este facto tem, na literatura
japonesa e na obra de Soseki, uma importância que não é apenas anedótica: é
que a crónica, pela forma pessoalizada como reflectia assuntos íntimos e públicos,
contribuiu para dar uma nova capacidade expressiva à subjectividade e, por
outro lado, para introduzir uma estética naturalista na abordagem das problemáticas
da realidade social.
Através
da Vidraça é um livro de crónicas. Mas crónicas
que, como Soseki expõe no inicio da obra, são originadas por vivências pessoais:
enclausurado pela doença, o autor busca, na memória ou em acontecimentos banais
do presente, situações que exemplifiquem ou contribuam para reflectir sobre
algumas das inquietações constantes e comuns a qualquer homem (o amor e o
tempo, a amizade e a solidão, o envelhecimento e a infância, a doença e a
morte).
Através
da Vidraça está bem longe de ser uma das obras
mais importantes de Soseki. E aqui tem de se salientar que os “vícios”, que enfermam
esta edição, fazem dela um aberrante equívoco: primeiro, não só esta obra foi
mal escolhida para introduzir o “interesse” por Soseki em Portugal, como a sua
publicação, sem qualquer tipo de enquadramento, pouco ou nenhum sentido terá para
o leitor português; segundo, é lamentável que não exista nenhuma referência sobre
qual a língua que serviu de base à tradução; por fim, a indicação de género
“romance”, na capa de uma colectânea de crónicas, faz desta edição uma condenável
mistificação. Não há dúvida que é um lamentável começo para uma editora.
Publicado
no Público em 1993.
Título: Através da Vidraça
Autor: Natsume SosekiTradução e Notas: José Caselas
Editor: Usus Editora
133 págs., esg.
Sem comentários:
Enviar um comentário