SOB A SUPERFÍCIE GELADA DA MORTE
Há já algum tempo que os estudos literários
convencionaram que existe, na literatura narrativa americana, uma linha mais
subterrânea, definida pelas obras de Hawthorne, Melville e Faulkner, que, pela
sua tipificação, funcionaria como uma espécie de contraponto ao “mainstream”
mais visível, marcado pelas obras de Twain, Crane e Hemingway. O que é certo, e
regressando à primeira linha referida, é que hoje, passados mais de oitenta
anos da publicação das primeiras obras de William Faulkner, parece que as obras
que balizaram esta linha, anteriores à produção deste autor, não passaram de
humús sedimentado que alimentou a frondosa árvore da sua actividade romanesca;
e que, por outro lado, toda a criação literária nesta linha que, nos anos
precedentes, foi aparecendo pela pena de diversos autores, nada mais fez do que
evidenciar a espessa sombra tutelar do escritor de Oxford, Mississipi.
Estas considerações vêm a propósito da publicação
no nosso país do primeiro romance de uma recente autora norte-americana,
Christina Schwarz, intitulado A Noite Em Que Me Afoguei (o título
original é Drowning Ruth). De facto, desde as suas primeiras páginas que o
leitor pressente nelas o perfil fantasmagórico de Faulkner... E, o que é mais
interessante, não tanto devido a aspectos superficiais, como, por exemplo, os
cénicos (o romance desta autora desenrola-se no frio Wisconsin e não no
ancestral Sul) ou os relacionados com os conflitos raciais (A
Noite Em Que Me Afoguei passa-se numa comunidade rural exclusivamente
branca nas primeiras décadas do século XX), mas devido a alusões mais
complexas: o aproveitamento de um universo claustrofóbico, uma perspectiva
invía na caracterização das personagens, o desenrolar da trama através de um
“sopro” que ascende ao registo mítico (para não dizer bíblico...), etc.
Gostaria de afirmar, antes do mais, que há já
algum tempo que o autor destas linhas não lia uma primeira obra que, de
imediato, o impressionasse de forma tão positiva, tendo em consideração o domínio
das técnicas narrativas que a autora revela, mas, em particular, pela forma
como as coloca ao serviço de uma obra inquestionavelmente poderosa pela
caracterização das personagens e pela dimensão trágica que envolve o seu destino.
Por outro lado, A Noite Em Que Me Afoguei integra-se numa constante da
literatura americana que, goste-se ou não, lhe deu algumas das suas
obras-primas: a narrativa de percursos de personagens que, contra a factuidade
adversa, se conseguem transcender em termos éticos.
Mesmo para quem minimize este tipo de etiquetas, é
importante salientar que este primeiro romance de Christina Schwarz é
inegavelmente feminino. E tal não se deve tanto ao facto desta obra se centrar
em quatro mulheres, mas mais porque toda a sua problemática é resultante de uma
reflexão dramática sobre a maternidade e qual a sua relação com a sexualidade,
a reprodução e a morte. De certo modo, a enfermeira Amanda Starkey (uma
personagem arquitectada de uma forma memorável), iniciada no terrível esplendor
da Morte ao tratar dos feridos e dos estropiados da Grande Guerra, irá perceber
que esta pode exigir-lhe compromissos éticos que a irão enredar num novelo que
lhe condicionará toda a existência. De facto, esse “esplendor” estigmará o
corpo desta personagem (tocando-o com o dedo da loucura, mas, em especial,
punindo-lhe o desejo amoroso com uma gravidez indesejada e condenável em termos sociais) e irá vinculá-lo à maternidade de uma “filha” que a própria Morte
lhe deixou nos braços.
Por fim, deve ser salientada a originalidade da
construção “gestáltica” das personagens deste romance (em particular, a já
referida Amanda e a sua sobrinha Ruth), a forma, na aparência, fragmentária e
sinuosa como se desenrola a narrativa – sempre contrapontada por “olhares
introspectivos” das personagens que, ao mesmo tempo, desfiguram e clarificam os
acontecimentos – e principalmente a forma como a autora sustenta toda a
narrativa até à revelação – apenas no final - da tragédia que determinou o
destino das personagens, conseguindo, com esse efeito, transmitir-lhes uma
auréola que as transfigura, carregando-as de um valor simbólico que as
transforma em arquétipos de todas as mulheres cuja existência se sujeitou ao
seu papel materno.
Publicado no Público
em 2003.
Título: A Noite Em Que Me Afoguei
Autor: Christina SchwarzEditor: Editorial Notícias
Tradutor: José Luís Luna
331 págs., esg.
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