A LEITURA DA PAIXÃO
Toda a
gente, que tem um hábito regular de leitura, já se perguntou, sem dúvida,
porque passa horas substanciais do seu dia em redor desses objectos que vão
enchendo a casa, dificultando a circulação, empurrando lentamente o leitor para
fora do seu espaço. É evidente que existem sempre argumentos culturais e
informativos; mas, muitas vezes, a inquietação e a dúvida desmontam esses
alibis e a interrogação paira sobre um campo de obscura perplexidade que não
desmobiliza, antes pelo contrário, fustiga essa paixão de ler.
Ora,
pode afirmar-se, antes do mais, que Se Uma Noite de Inverno Um Viajante,
a obra de Italo Calvino agora publicada, tenta precisar essa obscura perplexidade,
esse percurso de paixão.
Este
romance, desde 1979, data da sua publicação em Itália, tem sido saudado como uma
das obras mais relevantes da recente literatura italiana e, além disso, reconhece-se
nela a sinalização de um outro modo de entender a ficção que tem vindo a
transparecer, aqui e além, nalgumas das obras mais interessantes destes anos
oitenta.
Sobre
este aspecto convém referir que, sendo talvez a obra mais complexa deste autor,
podendo descortinar-se nela inúmeras pistas conexantes de leitura, não é meramente
acidental a existência de uma inquietação filosófica bastante próxima das
reflexões da semiótica e da teoria literária actual, em particular as reveladas
nos trabalhos de Umberto Eco e Giorgio Manganelli.
Durante
toda a obra, um eu narrador interpela um leitor/modelo que vai iniciar a
leitura de Se Numa Noite de Inverno Um Viajante, integrando-se, assim, no
próprio romance, a encenação da sua leitura (repare-se na similitude que existe
neste ponto com uma obra tão diversa como A História Interminável de Michael
Ende). Simplesmente, esse leitor/modelo, por um erro técnico de edição, não
consegue concluir a leitura do romance desse “tal Italo Calvino”. A exasperação
de a concluir, vai levá-lo a mergulhar em inúmeras situações rocambolescas e a
confrontar-se com uma leitora (como refere o Autor, a “Terceira Pessoa necessária para que um romance seja um romance”), a
irmã desta leitora, as instituições académicas, os editores, um falsário, um escritor,
organizações terroristas de mistificação literária, as ditaduras censórias do
Terceiro Mundo, etc., e, em paralelo, iniciar a leitura de mais nove novelas de
outros tantos autores oriundos de todos os cantos do mundo.
Todas
estas situações se desenvolvem numa total despreocupação de qualquer tipo de verosimilhança
e são apenas conduzidas por uma necessidade de coerência interna, o que permite
a Italo Calvino encená-las com um “cândido” humor, que é um dos seus sinais
estilísticos mais característicos. Por outro lado, os capítulos iniciais de
novelas e romances são admiráveis textos breves, verdadeiras preciosidades de técnica
narrativa, onde o autor consegue criar ambiências diversas e “simular”
radicalmente estilos de outros escritores.
O
autor, o “tal Italo Calvino”, torna-se, assim, uma figura exterior, distinta do
eu narrador, e que, como ente divino, vai montando as “ratoeiras” por onde o leitor/modelo
tem que passar. Ao leitor real, como diz Paolo Angeleri no seu prefácio,
intitulado “O Leitor Protagonista”, fica aberta a possibilidade de um confronto
dialógico com o leitor/modelo, e, por esse confronto, integrar-se melhor em
todo o discorrer reflexivo sobre a escrita, o estatuto do escritor, as funções
das personagens, etc. Contudo, e este é um dos aspectos inovadores deste
romance, toda esta reflexão é sempre desenvolvida segundo a óptica da leitura.
A necessidade de elaborar campos simbólicos onde
se tende a estabelecer problemáticas que, estrutural ou conjunturalmente,
personalizam cada um de nós, é, antes do mais, um mecanismo que pretende
satisfazer a “continuidade da vida” e
a “inevitabilidade da morte” que, tal
como se refere perto do final deste romance, são as duas faces para onde remetem
todas as narrativas. Por outras palavras, a narrativa é a encenação de um outro
espaço/tempo para onde transita, de forma parcelar, quem a escreve e que é
feita à dimensão e medida dessa mesma parcela. O espaço/tempo da ficção é, portanto,
o de uma representação ou, como pretende Italo Calvino neste romance, o de uma “mistificação”.
A
leitura satisfaz uma idêntica necessidade de representação ou de mistificação.
Simplesmente, já que a encenação desse espaço/tempo é um objecto exterior ao
leitor, este embate numa maior ou menor opacidade, obrigando-se a um íntimo
processo de comunicação, feito de confrontos e complementaridades. O leitor
fica, deste modo, condicionado a ”interpretar” essa encenação de espaço/tempo e
a retirar sentido do romanesco, de acordo com um conjunto circunstancial bastante
complexo, que podemos enunciar como o lugar da leitura. Em resumo, como diz
Italo Calvino, o único “verdadeiro” romance é aquele que o leitor “refaz” pela
leitura.
Mas será
que o prazer da leitura se basta no prazer da mistificação? Se Uma
Noite de Inverno Um Viajante explicita que a ficção é um tecido de ilusões
onde o leitor se perde na sua apetência de amar, de querer: a personagem, o
narrador, o autor são sempre objectos de amor; só que o leitor vai abraçando
sucessivas ilusões, visto que aqueles objectos se vão diluindo pelas linhas do
romance ao seu querer. É sempre a potencialidade dum acto de amor que leva à
leitura e é sempre uma apetência de amar que dela fica. A leitura cria assim
uma mediação, uma proximidade aos outros leitores, cultivando em todos uma
sensibilidade sintónica de desejo, que propicia “outras” circulações ao amor.
E o
autor? Como se refere no cap.VIII, o diário de Silas Flannery, autor/personagem
de Se
Uma Noite de Inverno Um Viajante, há, no estatuto do autor, uma irredutível
solidão: ele sabe que a leitura do corpo narrativo é distinta da do corpo real,
e que o acto de amor, que a leitura provoca, é irremediavelmente desviado do
autor para o seu duplo. Por outro lado, como é salientado no mesmo diário, o
autor sabe que, numa teia de significações e símbolos a que, de um modo ingénuo,
chamamos realidade, é um mero codificador: entre a realidade e a escrita existe
um hiato, com a forma de uma mão, que deixa atrás de si um não-escrito, um “indizível”
mesmo - e é esse resto indizível que o autor queria que o leitor conhecesse...
Mas já
vimos que, para Italo Calvino, o “verdadeiro” livro de um autor é aquele que é lido
pelo seu leitor desejado, já que, o que ele escreve, é uma mera “falsificação” (daí
a importância da personagem nuclear do falsário, enchendo o mundo de falsificações
de romances e novelas, “roubando” textos a autores, dando falsas autorias a
outros e por quem o autor/personagem confessa um grande fascínio). Por isso, o
autor reconhece que existe qualquer coisa no leitor que ele não dominará, e
que, portanto, a sua “posse” se restringirá à inoculação de uma “droga”, de um
“sonho”, que permitirá ao leitor “iludir-se” da passagem do tempo.
O autor,
repito, santifica-se, assim, em Se Uma Noite de Inverno Um Viajante,
com a auréola da Grande Solidão. Este, tendo-se como único interlocutor,
procurando em si mesmo o leitor mais amado, e sabendo que a sua escrita, como a
mistificação resultante, é personalizada, reconhece que é a sua existência que
dificulta (e ao mesmo tempo possibilita) a passagem daquilo que deveria vir de
tudo para o Todo desejado.
O autor
escreve o que deseja, o leitor lê o que deseja, e estes desejos ficarão sempre
desencontrados, desviados para os respectivos duplos, e deixando um resíduo que,
como referi no início, vai enchendo as nossas casas, dificultando a circulação,
empurrando-nos lentamente para fora do nosso espaço... Como o eu narrador de Se Uma
Noite de Inverno Um Viajante, ao comentar o acto de amor entre o
leitor/personagem e a leitora/personagem, refere:
“ (…) na satisfação que sentes pela
maneira como ela te lê, das citações textuais da tua objectividade física, uma
dúvida se insinua: que ela não te esteia a ler uno e inteiro como és, mas
usando-te, usando fragmentos de ti tirados do contexto para construir um
partner fantasmático, que só ela conhece, na penumbra da sua semi-consciência,
e que o que ela está a decifrar seja este apócrifo visitante dos seus sonhos e não
tu.
(...) Se quiseres representar graficamente
o conjunto, cada episódio com o seu cume, isso exigiria um modelo a três dimensões,
talvez a quatro, nenhum modelo, toda a experiência é irrepetível. O aspecto em
que abraço e leitura mais se assemelham é que no seu interior se abrem tempos e
espaços diferentes do tempo e espaço mensuráveis.
(..,) amanhã, Leitor e Leitora, se
estiverem juntos, se se deitarem na mesma cama como um casal arrumado, cada um
acenderá o candeeiro na sua mesa de cabeceira e mergulhará no seu livro; duas
leituras paralelas acompanharão a apresentação do sono; primeiro tu depois tu
apagareis a luz; retornados de universos separados, encontrar-vos-eis fugazmente
no escuro onde todas as distâncias se apagam, antes que sonhos divergentes vos
puxem ainda tu para um lado e tu para outro. Mas não ironizeis esta perspectiva
da harmonia conjugal: que imagem de casal mais feliz poderíeis contrapôr-lhe?”
Da paixão
da leitura à leitura da paixão: dois termos que, de certo modo, são convertíveis
e que definem o percurso de si para si de Se Uma Noite de Inverno Um Viajante.
Mas,
como é referido de forma constante neste romance de Italo Calvino, este é em síntese,
o Se
Uma Noite de Inverno Um Viajante que existe “deste” lugar de leitura. Outros
se deveriam criar, e não temos a menor dúvida em afirmar que a melhor forma de
saudar a edição em Portugal deste romance é efectuar aquilo que ele tanto
deseja: a ocupação entusiasmada do lugar de leitor.
Convém,
por fim, referir que a edição portuguesa deste romance, acompanhado pelo prefácio
já citado de Paolo Angeleri, por um estudo esclarecedor de José Manuel Vasconcelos
sobre a obra do romancista, por um apêndice do autor em que esquematiza a própria
feitura do romance, e por uma bibliografia (incluindo a indicação das obras
editadas em Portugal), revela um cuidado em apoiar o leitor com o devido
apetrechamento informativo, atitude que é pouco habitual no nosso país, e para
a qual não será decerto estranho o apoio concedido pelo Instituto Italiano de
Cultura.
Pena é
que o editor não tenha realizado um esforço complementar, melhorando a composição
e a impressão, de modo a produzir um objecto ainda mais aliciante. No entanto,
esperemos que a publicação deste romance não se torne um acontecimento isolado
e que obras como as de, por exemplo, Carlo Emilo Gadda, Elsa Morante, Dino
Buzzati e Giorgio Manganelli venham a receber uma edição tão cuidada como esta,
permitindo uma mais ampla divulgação entre nós da literatura italiana contemporânea.
Publicado
no Expresso em 1985.
Título:
Se Uma Noite de Inverno Um Viajante
Autor:
Italo Calvino
Prefácio:
Paolo Angeleri
Tradução:
Maria de Lurdes Sirgado Ganho e José Manuel de Vasconcelos
Editor:
Veja
Ano: 1985
287
págs., € 18,48