TEMPOS (APARENTEMENTE)
LIGEIROS
Desde
há alguns anos a esta parte que se generalizou a opinião de que o romance francês
está em crise. Que, depois do “nouveau roman”, só um ou outro autor, já consagrado
nos anos cinquenta ou sessenta e, por isso, com percursos literários esfumando-se
actualmente na linha do horizonte, permanece importante. Que não há novos
valores, que a mediocridade campeia, que se tornou uma das literaturas
europeias mais desinteressantes nos dias de hoje.
É difícil
ponderar estes juízos. Talvez assim seja, de facto. Mas, de qualquer modo,
parece estranho que a literatura francesa, depois de ter tido um papel tão
hegemónico e basilar na definição de gostos e tendências, tenha sombreado em
tal apatia.
Em
termos pessoais, duvido desta imagem que se faz da literatura francesa. Creio
que o motivo desta “aparência” está na dimensão luxuriante do mundo editorial e
literário francês. Isto é, este meio, repleto todos os dias de novos títulos,
de prémios literários, de jovens autores, de diversas “saisons”, de casas editoras
em permanente competição comercial, de revistas e publicações periódicas
revelando constantes “genialidades”, tomou tais dimensões (só ultrapassado pelo
universo editorial americano que também dá imagem semelhante de si mesmo), estabeleceu-se
a tal ponto e definiu tão rigorosas “hierarquias” que provocou a “perdição” dos
próprios produtores e analistas desse meio. Por isso mesmo, de forma permanente,
se vê destacar obras literárias de facto inovadoras ao lado de outras que apenas
são evidenciadas em consequência do labirinto de espelhos, de reverências irremediavelmente
obrigatórias, que os “responsáveis” do meio literário francês criaram entre si.
O caso
de Félicien Marceau é bem típico de tudo isto. De origem belga, este autor começou
a publicar no finais da década de quarenta, impondo à sua obra um constante
realismo balzaquiano, certeiro para efectuar um diversificado retrato dos
costumes actuais franceses e para fazer, aqui e além, uma sortida também no
romance histórico, temperando-o com um mais ou menos diáfano erotismo, muito sedutor
e envolvente. Senhor de um estilo hábil e “humorado”, Félicien Marceau foi,
pacientemente, elaborando uma obra já vasta em títulos, sempre sustentada por
um quase ininterrupto sucesso de vendas e por um caloroso louvor crítico (a título
de exemplo refira-se que Félicien Marceau já ganhou o Goncourt com Creezy,
há já alguns anos traduzido para português). Tornou-se, deste modo, um autor
respeitado e uma das mais elevadas referências no meio literário francês; mas ninguém
poderá afirmar que Félicien Marceau, mesmo tão credenciado, tenha alguma vez produzido
uma obra-prima ou que, seja de que forma for, tenha contribuído para a renovação
das estruturas romanescas.
As
Paixões Partilhadas, o seu último título, de imediato
traduzido para português, não só evidencia bem esta mediania, como nada
acrescenta de significativo à sua obra.
A acção
do romance centra-se na descrição da vida de um casal, instituído nos anos
trinta, e constituído por Cédric de
Saint
Damien, descendente de uma antiga família aristocrática do Languedoc, e Emmeline
Ricou, filha de um grande comerciante, rapidamente enriquecido com a lª Guerra
Mundial. Ao longo de vinte e nove capítulos, vemos como esta família, fundada
nos valores aristocráticos, vai adequando o seu comportamento a um mundo
adverso, abrindo as suas relações de amizade, criando imprevisíveis
cumplicidades com o seu pessoal doméstico, instituindo um jogo amoroso que em
silêncio admite os deleites das “fugas” à conjugalidade,
e, enfim, como, de uma forma ao mesmo tempo convicta e leve, se vai esquivando
aos espectros negros que a História lhes vai colocando no seu destino.
Sem
sombras de dúvida que As Paixões Partilhadas pretende perpassar
uma ligeireza que, a seu modo, reflecte uma alegria luminosa de viver e o
prazer sereno dos pequenos gestos que provocam mudanças profundas nos modos de
estar. No entanto, sendo um romance de fácil e até agradável leitura, não deixa
de transmitir ao leitor a convicção de que toda a motivação que lhe deu origem é
eminentemente fútil. Não será este romance, tão louvado pela crítica local, a
prova cabal de que existe uma “mecânica perversa” no meio literário francês?
Publicado
no Expresso em 1988.
Título:
As Paixões Partilhadas
Autor:
Félicien Marceau
Tradutor:
Fernanda Pinto Rodrigues
Editor:
Gradiva
Ano: 1988
221
págs., 8,56 €
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