A DOR DE CRESCER
O romancista Frank Ronan, comparado com outros
escritores irlandeses contemporâneos ou mesmo com a sua repercussão em outros
países, é um caso peculiar de sucesso público e crítico em Portugal: de facto,
creio que nenhum escritor irlandês actual tem a sua obra completa publicada em
português como é o seu caso. Isto deve-se ao relativo sucesso de vendas dos
seus livros (em particular, de Os Homens Que Amaram Evelyn Cotton, Piquenique
no Paraíso ou mesmo Os Homens Bronzeados Ficam Bonitos) e,
obviamente, ao esforço do seu editor no nosso país.
Creio que este sucesso é resultante do facto de
Frank Ronan ter sido encarado pelo leitor português como um representante (sobretudo
com a primeira obra referida) de uma nova geração de escritores que parecia
conseguir, através de um registo estilístico marcado pela fluidez e pela
coloquialidade, uma maior “proximidade” aos problemas da sua própria geração,
tratando com desenvoltura e uma frontalidade despreconceituada certas
problemáticas sociais, como, por exemplo, a sexualidade. Por outro lado,
parecia que a principal preocupação literária, que unia estes escritores, era
atingir uma forte eficácia narrativa de modo a envolver e a cativar o leitor.
Foi esta geração que, depois de ter feito uma larga “escola”, veio a ser
conhecida como produtora do que mais tarde se chamou literatura “light”.
No entanto, no caso de Frank Ronan, creio que a
utilização deste epíteto para caracterizar a sua produção narrativa foi um
equívoco: mesmo que não se tenha acompanhado o seu percurso literário, título a
título, basta a leitura do seu último romance, A Comunidade, agora
traduzido para português, para se perceber que as preocupações do autor estão
distantes daquele tipo de literatura.
A Comunidade narra o percurso de uma criança irlandesa até à adolescência (é curioso
como, nos últimos anos, têm aparecido, nos circuitos internacionais de edição,
inúmeras obras debruçando-se sobre os universos da primeira infância na
Irlanda), filha da geração que protagonizou os anos sessenta e setenta. A
criança vai, por isso, sofrer as consequências afectivas e emocionais das
experiências comportamentais e sociais que esta geração resolveu levar a cabo,
ao procurar libertar-se da mediocridade pardacenta que fora a vida dos seus pais.
Porém, o autor resolveu iniciar a narração deste percurso, utilizando um
registo extremo de farsa que, a pouco e pouco (mormente, a partir da fase em
que a criança, raptada pelos avós maternos, vai viver com eles), abandona,
passando para um registo mais trágico e emotivo. O contraste violento dos dois
registos desequilibra o romance e provoca, no leitor, um conflito de
perspectiva que anula o efeito de dimensão e relevo que têm as diversas
situações no processo de crescimento afectivo da criança: só no seguimento da
leitura se consegue perceber a que ponto a primeira fase da sua vida (aquela
que vive na “comunidade” que dá origem ao título do romance) se torna uma
“reminiscência” fundamental para o seu equilíbrio emocional na fase posterior
(a que vive com os avós), absurdamente agreste e solitária. Quer isto dizer,
que o registo de farsa utilizado de início revela-se, de certo modo,
inexplicável e incoerente com o sentido do romance.
Por outro lado, esse registo parece um pouco
desajustado, e até leviano, para analisar a problemática do desequilíbrio
emocional e afectivo de filhos gerados em famílias não convencionais e/ou
monoparentais. De facto, salvo raras excepções (recordo-me de alguns romances
interessantes de John Irving), a literatura narrativa das últimas décadas ainda
não produziu nenhuma obra verdadeiramente expressiva sobre este tema que tem,
nos dias de hoje, tantas implicações sociais. É evidente que é um tema
culpabilizador, tendente a posições extremadas, e que não pode ter uma análise
linear e globalizante: veja-se, por exemplo, que a criança caracterizada em A
Comunidade apenas obtém algum apoio afectivo e alguma referência
comportamental de figuras que não têm nenhuma relação de consanguinidade com
ela.
Poderá afirmar-se que os registos, em que A
Comunidade se afunda, são resultantes da opção do autor em enfocar a
envolvência social da criança sob o prisma do seu olhar e que, nesta
circunstância, todos os comportamentos adultos aparecem como absurdos e
irrisórios - seja o comportamento “beat” da “comunidade” em que vive a sua mãe,
com os seus pretensiosismos místicos e demiúrgicos, seja o comportamento
“padronizado” dos avós, apenas preocupados com as aparências e por obter
reconhecimento social. No entanto, no caso de A Comunidade, esta opção
parece-nos fácil em excesso: a dor de crescer é quase sempre demasiado
lancinante (como revelam os trechos mais conseguidos do romance) para ser
escamoteada por uma comicidade que, muitas vezes, aparece nestas páginas com
uma dimensão grotesca.
Publicado no Público
em 2002.
Título: A Comunidade
Autor: Frank Ronan
Tradução: Maria do Carmo Figueira
Editor: Gradiva
Ano: 2002
228 págs., 16 €
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