terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

FRANK RONAN



 
 
 

A DOR DE CRESCER
 
O romancista Frank Ronan, comparado com outros escritores irlandeses contemporâneos ou mesmo com a sua repercussão em outros países, é um caso peculiar de sucesso público e crítico em Portugal: de facto, creio que nenhum escritor irlandês actual tem a sua obra completa publicada em português como é o seu caso. Isto deve-se ao relativo sucesso de vendas dos seus livros (em particular, de Os Homens Que Amaram Evelyn Cotton, Piquenique no Paraíso ou mesmo Os Homens Bronzeados Ficam Bonitos) e, obviamente, ao esforço do seu editor no nosso país.
 
Creio que este sucesso é resultante do facto de Frank Ronan ter sido encarado pelo leitor português como um representante (sobretudo com a primeira obra referida) de uma nova geração de escritores que parecia conseguir, através de um registo estilístico marcado pela fluidez e pela coloquialidade, uma maior “proximidade” aos problemas da sua própria geração, tratando com desenvoltura e uma frontalidade despreconceituada certas problemáticas sociais, como, por exemplo, a sexualidade. Por outro lado, parecia que a principal preocupação literária, que unia estes escritores, era atingir uma forte eficácia narrativa de modo a envolver e a cativar o leitor. Foi esta geração que, depois de ter feito uma larga “escola”, veio a ser conhecida como produtora do que mais tarde se chamou literatura “light”.
 
No entanto, no caso de Frank Ronan, creio que a utilização deste epíteto para caracterizar a sua produção narrativa foi um equívoco: mesmo que não se tenha acompanhado o seu percurso literário, título a título, basta a leitura do seu último romance, A Comunidade, agora traduzido para português, para se perceber que as preocupações do autor estão distantes daquele tipo de literatura.
 
A Comunidade narra o percurso de uma criança irlandesa até à adolescência (é curioso como, nos últimos anos, têm aparecido, nos circuitos internacionais de edição, inúmeras obras debruçando-se sobre os universos da primeira infância na Irlanda), filha da geração que protagonizou os anos sessenta e setenta. A criança vai, por isso, sofrer as consequências afectivas e emocionais das experiências comportamentais e sociais que esta geração resolveu levar a cabo, ao procurar libertar-se da mediocridade pardacenta que fora a vida dos seus pais. Porém, o autor resolveu iniciar a narração deste percurso, utilizando um registo extremo de farsa que, a pouco e pouco (mormente, a partir da fase em que a criança, raptada pelos avós maternos, vai viver com eles), abandona, passando para um registo mais trágico e emotivo. O contraste violento dos dois registos desequilibra o romance e provoca, no leitor, um conflito de perspectiva que anula o efeito de dimensão e relevo que têm as diversas situações no processo de crescimento afectivo da criança: só no seguimento da leitura se consegue perceber a que ponto a primeira fase da sua vida (aquela que vive na “comunidade” que dá origem ao título do romance) se torna uma “reminiscência” fundamental para o seu equilíbrio emocional na fase posterior (a que vive com os avós), absurdamente agreste e solitária. Quer isto dizer, que o registo de farsa utilizado de início revela-se, de certo modo, inexplicável e incoerente com o sentido do romance.
 
Por outro lado, esse registo parece um pouco desajustado, e até leviano, para analisar a problemática do desequilíbrio emocional e afectivo de filhos gerados em famílias não convencionais e/ou monoparentais. De facto, salvo raras excepções (recordo-me de alguns romances interessantes de John Irving), a literatura narrativa das últimas décadas ainda não produziu nenhuma obra verdadeiramente expressiva sobre este tema que tem, nos dias de hoje, tantas implicações sociais. É evidente que é um tema culpabilizador, tendente a posições extremadas, e que não pode ter uma análise linear e globalizante: veja-se, por exemplo, que a criança caracterizada em A Comunidade apenas obtém algum apoio afectivo e alguma referência comportamental de figuras que não têm nenhuma relação de consanguinidade com ela.
 
Poderá afirmar-se que os registos, em que A Comunidade se afunda, são resultantes da opção do autor em enfocar a envolvência social da criança sob o prisma do seu olhar e que, nesta circunstância, todos os comportamentos adultos aparecem como absurdos e irrisórios - seja o comportamento “beat” da “comunidade” em que vive a sua mãe, com os seus pretensiosismos místicos e demiúrgicos, seja o comportamento “padronizado” dos avós, apenas preocupados com as aparências e por obter reconhecimento social. No entanto, no caso de A Comunidade, esta opção parece-nos fácil em excesso: a dor de crescer é quase sempre demasiado lancinante (como revelam os trechos mais conseguidos do romance) para ser escamoteada por uma comicidade que, muitas vezes, aparece nestas páginas com uma dimensão grotesca.
 
 
Publicado no Público em 2002.
 
 
 
Título: A Comunidade
Autor: Frank Ronan
Tradução: Maria do Carmo Figueira
Editor: Gradiva
Ano: 2002
228 págs., 16 €
 


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