O AMOR NA SOMBRA
O caso da literatura contemporânea suíça é
particularmente interessante para tentar compreender a importância da língua,
por um lado, e das cidades – como pólos catalisadores da actividade cultural -,
por outro, para a consolidação e expansão da literatura narrativa. Não há
dúvida que, quer se considere o campo da expressão alemã, quer se considere o
campo da expressão francesa (o caso da expressão italiana parece ser menos
significativo, devendo, contudo, assinalar-se o caso da notabilíssima escritora
Fleur Jaeggy), a literatura suíça tem, na geografia da narrativa do séc. XX,
uma importância indiscutível: basta lembrar os nomes de Robert Walser (que a
edição portuguesa, com mérito, descobriu o ano passado), Max Frisch, Friedrich
Dürrenmatt, Paul Nizon, Adolf Muschg e Fritz Zorn, no primeiro campo, ou, no
segundo, de C.-F. Ramuz, Blaise Cendrars (mais tarde naturalizou-se francês),
Albert Cohen, Robert Pinget e Jacques Chessex. Contudo, enquanto, no cânone
contemporâneo da literatura suíça de expressão alemã, são inteligíveis
elementos que permitem definir uma certa “territorialidade”, já no caso da
literatura suíça de expressão francesa esta nos parece mais diluída, dando, por
conseguinte, a ideia de que não tem significativa autonomia e vive ainda muito
na órbita do pólo cultural parisiense. Este facto, que nos parece facilmente
confirmável, permite-nos colocar questões pertinentes para a compreensão do
fenómeno da literatura narrativa escrita: até que ponto a situação acima
enunciada deriva do poder catalisador distinto, em termos culturais, dos pólos
urbanos de Zurique/Basileia e de Genebra/Lausana? Será que a especificidade da
literatura narrativa de expressão alemã está relacionada com o suporte de uma
estrutura editorial com alguma autonomia em relação à edição alemã e austríaca,
enquanto, pelo contrário, a estrutura editorial que sustenta a literatura
narrativa de expressão francesa é muito mais frágil e subsidiária em relação à
edição francesa?
Estas considerações são de imediato motivadas pela
edição portuguesa da excelente novela de Urs Widmer, O Amante Da Minha Mãe.
Este autor, de expressão alemã, começou a sua vida literária por publicar
narrativa nos finais dos anos sessenta; é, contudo, nos domínios da dramaturgia
que se vai destacar nas décadas seguintes, durante uma larga estadia na
Alemanha, em Frankfurt, onde participa activamente na vida cultural desta
cidade, ganhando os mais importantes prémios para dramaturgia em língua alemã.
Paralelamente, no entanto, continua a publicar narrativa (já publicou mais de
uma dúzia de títulos, entre romance, colectâneas de contos, autobiografias e
narrativa de viagens) e, nesta área, ganhou também vários prémios, tanto na Suíça
como na Alemanha (realço, em particular, o Prémio Heimito von Doderer). No
início dos anos oitenta regressa a Zurique, tornando-se uma das figuras mais
intervenientes na vida cultural suíça. A novela O Amante Da Minha Mãe foi
publicada, pela primeira vez, em 1999, tornando-se até hoje o seu maior sucesso
comercial.
Um dos aspectos aliciantes desta novela deriva da
forma como “desliza” pelas suas páginas a história do séc. XX europeu, em
particular, através dos seus reflexos no destino das personagens. E o termo
“deslizar” parece-nos (passe a imodéstia) bem apropriado: é que o tempo flui
nesta narrativa como um rio sereno, de ondulação suave, mesmo quando origina
paixões ou sofrimentos insustentáveis. Ao mesmo tempo, esta breve novela
espelha, de forma também aliciante, como se formou e afirmou, a partir do
início do século passado, a vanguarda estética da chamada música erudita
contemporânea: de facto, O Amante Da Minha Mãe revela, de um
modo exemplar, como o entusiasmo heróico de um pequeno grupo de seguidores de
Ravel e Bartok (que aparecem fugazmente nas suas páginas) conseguiu impor,
passo a passo, as suas concepções musicais nas salas de concerto das capitais
culturais da Europa e, por outro lado, como esse movimento se sustentou no
papel mecenático da ascendente burguesia industrial esclarecida da
“Mitteleurope”.
Outro elemento atractivo desta novela emana da
ambiência tipicamente burguesa - descrita de uma forma que já não é comum na
ficção contemporânea – das famílias das personagens principais, com a sua
ascensão e queda de fortunas, e se constata como a sinuosidade trágica do tempo
não é mais do que a linha obscura da sorte, da obstinação, do trabalho e do
poder inventivo. São memoráveis, pelo seu poder de evocação, as páginas onde se
narra a origem italiana da família da figura feminina central (a muda e trágica
aparição do Preto, essa figura mítica de africano, fugindo a um destino de
miséria, e a noite de compaixão e amor em que se gerou o seu avô) ou se
descreve as cumplicidades festivas e patriarcais das famílias vinhateiras do
Piemonte com as autoridades fascistas romanas.
É evidente que o núcleo de O Amante Da Minha Mãe,
tal como o título prenuncia, é uma intensa história de amor, de uma vida
inteira, da mãe do narrador. Uma peculiar história de amor, embebida de
reconhecimento e admiração, em que a personagem principal, procurando sempre
controlar a exigência de afirmação do seu afecto e reduzindo-se a uma sombra
fugaz para não perturbar o glorioso esplendor do amado, assumiu o destino
silencioso dos satélites; uma história de amor patética no desespero em que o
ente amante contraria a intensidade com o pudor e implode no delírio e na
loucura.
Mas o que transforma esta novela numa pequena
preciosidade é o cuidado estilístico com que Urs Widmer procura transmitir, de
forma contida, mas, ao mesmo tempo, vibrante, sentimentos e destinos que
atingem o limite do indizível (um magnifico exemplo destas qualidades
narrativas está na forma como é descrita a morte da mãe), dando uma tonalidade
de música de câmara ao percurso de figuras que, a seu modo, estiveram associadas
à formação da Europa tal como hoje culturalmente a entendemos. Há, de facto, em
O
Amante Da Minha Mãe, uma tonalidade, ao mesmo tempo lírica e nostálgica
– muito bem apreendida pela tradutora –, que irá, de certeza, gerar um conjunto
significativo de leitores cúmplices na descoberta de uma obra bela e comovente.
Publicado no Público
em 2003.
(Foto do Autor de ddp).
(Foto do Autor de ddp).
Título: O Amante Da Minha Mãe
Autor: Urs Widmer
Tradutor: Maria Nóvoa
Editor: Asa
Ano: 2003
122 págs., esg.
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