O NAVIO DO ENCANTAMENTO
Quando
se pensa, em termos literários, na Colômbia, um único nome parece pairar sobre
este país: Gabriel García Márquez. No entanto, na Europa, e principalmente em
Espanha, um outro nome, nos últimos anos, tem granjeado bastante prestígio, ao
ponto de hoje ser encarado como um dos expoentes das literaturas
latino-americanas contemporâneas: esse nome é o de Álvaro Mutis, o autor de
quem foi agora traduzida pela primeira vez uma novela, A Última Escala do Tramp Steamer.
Nada,
contudo, aproxima em termos literários o engenheiro Álvaro Mutis do seu
nobilitado conterrâneo e amigo. Nascido em 1926, logo no final da década de quarenta
começou a publicar poesia. Desde essa época até aos dias de hoje, Álvaro Mutis
tem construído uma importante obra poética (muito louvada por outro Nobel: Octávio
Paz) e que é, quase toda ela, centrada numa personagem que funciona como seu
“alter-ego”: o marinheiro Maqrol el Gaviero.
Foi já
depois do seu reconhecimento como poeta que este autor iniciou a sua produção
narrativa, motivado pela necessidade de dar uma dimensão diferente à personagem
de Maqrol el Gaviero. Hoje, novelas, como La Nieve del Almirante, Ilona
Llega con la Lluvia e Un Bel Morir, entre outras, deram ao
narrador um prestígio semelhante ao que já tinha como poeta e transformaram o
conjunto da sua obra, interligada pelo mesmo protagonista, num dos mais
aliciantes projectos literários das letras hispânicas.
Todo o
universo narrativo deste autor tem um ascendente marcadamente cosmopolita. As
suas referências literárias têm origem em Stevenson, Melville e, de forma bem
explícita, nessa figura de charneira da literatura inglesa do princípio do século
que é Joseph Conrad. Porém, foi essa formação “europeia” que tem permitido a
Álvaro Mutis efectuar uma original e polémica reflexão sobre o percurso e o
papel da cultura europeia no confronto com as realidades americanas. Além
disso, sabendo o estatuto que a personagem tem para o autor, compreende-se que Maqrol
el Gaviero seja também caracterizado como um “europeu” em “terras estranhas”.
A Última
Escala do Tramp Steamer é uma das poucas novelas de Álvaro Mutis
que parece sair do ciclo de Maqrol el Gaviero. No entanto, nem por isso deixa
de ter uma estrutura narrativa menos conradiana do que qualquer uma das outras.
Como em Conrad, aqui encontramos o narrador que tem conhecimento da acção através
do testemunho directo dos protagonistas, que intervém de forma cúmplice nessa mesma
acção e que, por fim, sente uma certa necessidade ética em a transmitir em
termos narrativos.
A
trama desta novela tem a simplicidade das histórias de amor impossível e que,
por isso mesmo, são vividas com a intensidade do que se sabe, desde o princípio,
que é precário.
O
narrador, andarilho do mundo, encontra, nos lugares mais díspares do globo, um
velho cargueiro do tipo “tramp steamer”. Essas autênticas aparições, pelo seu
carácter de excepção, fazem, aos olhos do narrador, com que aquele barco - sem
rota certa, em serviço de fretagem entre os portos da Europa e da América, e que,
a todo o momento, parece naufragar - se torne uma metáfora premonitória de um destino,
ao mesmo tempo, pessoal e universal.
Porém,
o narrador vem a saber, por longas conversas nocturnas com um companheiro de
viagem a bordo de um rebocador descendo o rio Orinoco até à foz, que o acaso
quis que essas aparições fizessem dele testemunha involuntária (e há, nesta
situação do narrador, uma determinada perspectiva do estatuto do escritor) de
uma história de amor efémera – porque inconciliável culturalmente - entre um
basco e uma libanesa; uma história de amor que nasceu por causa daquele velho
cargueiro, que nele foi vivida e que o ansioso desejo dos amantes em mantê-la
explica, no fundo, a sua “resistência” quase milagrosa às intempéries.
A ambiência
da obra e o tom melancólico com que esta história é narrada transmitem uma
imagem nostálgica e um pouco fatalista da existência. De facto, as personagens
agem como se estivessem convictas de que, como sinal de Graça dado pela Criação,
todos têm de cumprir uma história de amor: a existência toma-se num percurso de
iniciação ao encantamento e, depois da consumação deste, numa funesta descida
em que o corpo se prepara para se afundar na corrente do esquecimento. Pelo
meio, fica a obrigação de, através dos filamentos subterrâneos da amizade e da
arte, se expressar o sentido com que a existência jovialmente se sacrificou.
É nítido,
em A
Última Escala do Tramp Steamer, no seu estilo fluente, classicizante e
erudito, o gosto de contador de histórias de Álvaro Mutis. Esta novela, até na
sua textura singela e concisa, lembra o rebocador em que o narrador desce a
corrente serena de um rio, deixando que o leitor descubra as sinuosidades das
margens, que se deslumbre com um céu repleto de estrelas e que vá adquirindo a
certeza que, ao chegar à foz, irá achar que foi gratificante a viagem.
Publicado
no Público em 1993.
Título: A Última Escala do Tramp Steamer
Autor: Álvaro Mutis
Tradutor: J. Teixeira de Aguilar
Editor: Asa
Ano: 1993
127 págs., € 8,06