UMA TERNA CANIBAL EM MANHATTAN
Na última década de oitenta, sucedeu um
acontecimento civilizacional que, à distância de uns meros vinte anos, parece
já diluir-se na bruma dos tempos… Mas foi nessa década que Nova Iorque se tornou
a metrópole primordial da irradiação de modelos socioculturais e a grande referência
mundial em termos de criatividade artística, superando neste papel as cidades
de Londres (da década de setenta) e de Paris (da década de sessenta). Hoje
torna-se evidente que este acontecimento reflecte uma mutação decisiva na
história da humanidade: é a primeira vez que o foco principal de irradiação de modelos
culturais e civilizacionais deixa de se situar na Europa e se estabelece no
chamado Novo Mundo. Além disso, este acontecimento reflecte também a supremacia
dos meios de difusão das formas de cultura popular urbana em relação aos meios
tradicionais de difusão da cultura erudita. Por último, deve ainda ser salientado
que, em consequência da continuação do estatuto hegemónico da língua inglesa no
contexto universal, não se vislumbra, apesar do evidente declínio económico e
político dos Estados Unidos, que apareça uma nova metrópole que, com toda a
evidencia, retire a Nova Iorque o estatuto que conquistou na referida década de
oitenta…
Estas reflexões - que são uma simples constatação
do óbvio – são importantes para compreender o destino literário da escritora
que agora nos ocupa: Tama Janowitz. De facto, o seu destino “encavalitou-se” na
mutação acima referida e, em grande parte, o interesse suscitado pela sua obra derivou
do fascínio mundial pelas novas formas de sociabilidade que pareciam na altura brotar
um pouco por toda a cidade de Nova Iorque…
Esta autora nasceu em 1957, em São Francisco , mas
cedo foi viver com a sua mãe (os seus pais separaram-se, ainda Tama Janowitz era
uma criança) para Nova Iorque, onde fez toda a sua formação nos domínios da
Escrita Criativa. Nos inícios da década de oitenta, publicou o seu primeiro
romance, American Dad, com fortes componentes autobiográficas, que
obteve algum reconhecimento da crítica. De seguida, escreve vários romances,
que não consegue publicar, até que decide apostar num outro tipo de estrutura –
uma colectânea de contos articulados de diversas formas – a que dá o nome de Slaves
of New York e que publica em 1986. Como é sabido, esta obra obteve um
tremendo sucesso, não só da crítica, mas principalmente do público, atingindo
vendas astronómicas nos Estados Unidos e sendo traduzida em quase todas as
línguas do mundo. Tama Janowitz ascendeu assim ao estatuto de verdadeira vedeta
literária, com toda a comunicação social a procurar entrevistá-la e conhecê-la…
Passou então a ocupar, nesses últimos anos da década de oitenta, um lugar
permanente no “jet-set” cultural nova-iorquino (acompanhada pelos escritores
Breat Easton Ellis e Jay McInerney e “apadrinhada” por Andy Warhol),
tornando-se uma presença constante nas festas mundanas e na vida nocturna da
cidade.
Talvez convenha lembrar – tendo em conta a
presente distância temporal – quais foram os motivos de tão tremendo sucesso.
Não há dúvida nenhuma que foi resultante de dois factores: primeiro, a
descrição da vida de uma certa população nova-iorquina (galeristas, artistas
plásticos, escritores, publicitários, investigadores universitários, etc.) que tinha
comportamentos privados e públicos que apareciam como uma “novidade escandalosa”
no “exterior” deste universo; segundo, porque esta descrição é realizada num
estilo “ligeiro” e notoriamente “amoral” (recordo que há quem considere – a meu
ver de forma injusta - que Tama Janowitz é uma das fundadoras daquilo que,
algum tempo depois, se veio chamar literatura “light”). Hoje torna-se bem
evidente que era determinante na obra de Tama Janowitz uma constatação social
que, na sua produção literária posterior, vai aparecer como uma constante
referência: a de que existe uma fronteira ténue entre a chamada pequena marginalidade
(prostitutas, “clochards”, burlões de rua, “dealers” e toxicodependentes) e os
que se colocam intencionalmente à margem do sistema produtivo com o intuito de
desenvolver as suas potencialidades criadoras e “aproveitar” as eventuais oportunidades
que o próprio sistema lhe concede como “criativos”.
Em Portugal, tal como no restante mundo, também a
obra de Tama Janowitz foi um sucesso. Isso deve-se, sem sombra de dúvida, à
atenção de um editor que, desde sempre, tem revelado argúcia em perceber aquilo
que se publica no exterior de aliciante para o público nacional; e ao trabalho
de tradução de Carlota Pracana que conseguiu “passar” para a nossa língua o
estilo coloquial da autora.
Porém, já na altura, havia quem considerasse que
grande parte do sucesso da obra derivava mais de circunstâncias do foro
sociológico do que por motivos apenas literários. E que, por isso mesmo, o
sucesso de Escravos de Nova Iorque não reflectia o efectivo aparecimento
de uma grande escritora.
Os romances que Tama Janowitz publicou depois,
durante o resto da década de oitenta e na seguinte (A Cannibal In Manhattan, The
Male Cross-Dresser Support Group e By The Shores Of Gitchee Gumee),
pareciam dar razão aos que defendiam esta última tese. De facto, não só não
obtiveram, nem de perto nem de longe, o sucesso de Escravos de Nova Iorque,
como a crítica foi apontando, por sistema, um “olhar” da autora demasiado
superficial. Denunciava, por exemplo, um humor fácil em excesso (“grotesco”,
“exagerado”, “personagens histéricas e inverosímeis”, foram os adjectivos com
que etiquetaram estas obras), mas, em particular, a dificuldade em articular o
tom de sátira social – que as personagens, pelo seu comportamento desajustado
em relação à realidade, enfatizavam – com a intenção, em contraponto, de “humanizar”
situações, inserindo-as, de forma plausível, num contexto urbano e procurando
justificá-las com um meio dilacerantemente competitivo e que desfigura qualquer
forma de saudável sociabilidade.
No entanto, mesmo não atingindo os extraordinários
efeitos comerciais de Escravos de Nova Iorque, os últimos
romances de Tama Janowitz, A Certain Age e Peyton Amberg, voltaram a
reconciliá-la com a crítica e com o público. Basicamente, os dois romances
tratam do mesmo tema: a busca das protagonistas (no primeiro romance, uma
mulher com pouco mais de trinta anos; no segundo, outra com cerca de cinquenta)
em se afirmarem em termos sociais e adquirirem um estatuto de maior destaque (através
da “conquista” de um marido rico, no primeiro caso; através do esforço ansioso
em se manter sedutora, no segundo) num mundo dominado pelos homens.
De certo modo – e a critica referencia muito este
aspecto – as novas protagonistas dos recentes romances de Tama Janowitz são o
sucedâneo de uma das personagens principais (Eleanor T) de Escravos de Nova Iorque,
agora já mais velhas e com ambições diferentes. De facto, enquanto Eleanor T,
mesmo com um comportamento sujeito às flutuações de uma atribulada vida
afectiva, orienta a sua ambição para adquirir um lugar de destaque no meio
artístico, as personagens dos últimos romances já apenas ambicionam conquistar
um estatuto social através do seu corpo e do charme feminino.
Em jeito de balanço, talvez já se possa afirmar
que o percurso literário de Tama Janowitz comprova que não era nem se tornou
uma das figuras centrais da sua geração no universo literário americano; mas,
por outro lado, também não se deve considerá-la como uma escritora de uma “única”
obra com mérito literário e que, de forma quase acidental, obteve com ela um
gigantesco sucesso comercial. Creio que o juízo mais acertado é considerar Tama
Janowitz como uma interessante cronista dos comportamentos socioculturais e
afectivos da população nova-iorquina, principalmente feminina. Os seus romances
têm demonstrado que a autora possui um olhar arguto na compreensão das
motivações dessa população, captando as suas posturas sofisticadas e os jogos
de ilusões em que se enredam, como – parafraseando um título de uma obra sua –
um “canibal” terno e irónico que se “alimenta” dos destroços de quimeras e revela
as misérias quotidianas que essas mulheres (e homens), numa procissão fantasmagórica
e absurda, vão despojando pelas ruas e avenidas “glamorosas” e frias da Big
Apple.
Publicado na web em 2009.
Título: Escravos
de Nova Iorque
Autor: Tama
Janowitz
Tradutor: Carlota
Pracana
Edição: Teorema
Ano: 1989
329 págs., € 15,75
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