O CONHECIMENTO PELA
PIEDADE
Até há
algumas décadas atrás, um autor judeu era uma entidade que o leitor facilmente
reconhecia: havia sempre uma acentuada componente religiosa, um pouco exógena,
que, mesmo nos autores laicos, funcionava como estigma; um ascendente do
cimento comunitário, resultante da situação de minoria segregada, mas também da
demarcação face aos “gentios” cristãos; um sentido histórico de redenção do
mundo, associado a uma propensão para a culpa e para o sacrifício, etc. Além
disso, o escritor judeu do pós-guerra sentia uma exigência obsessiva em
exorcizar o Holocausto, em nome não só das vítimas, mas também dos carrascos.
Hoje é
nítido, desaparecidos os condicionalismos culturais e materiais que originaram
o “ghetto”, que a civilização ocidental, com a sua vocação omnívora, conseguiu diluir
nas suas componentes essa “sensibilidade judaica”, plausivelmente, porque nada
existia de muito distinto, e ainda menos de inconciliável, entre a civilização ocidental
e a referida “sensibilidade”, O estatuto de judeu afirma-se, pelo contrário,
como uma das vertentes mais cosmopolitas da cultura ocidental. Não é por acaso
que os poucos escritores que hoje reivindicam esse estatuto lhe dão um valor
simbólico: o de nómada entre culturas, de resistente passivo à ordem dos
Estados.
A própria
literatura israelita reflecte hoje esta situação: em muitos dos seus escritores
é irreconhecível essa “sensibilidade judaica” - pelo menos na sua acepção
tradicional - e, se ressalvarmos o específico contexto político e social, pouco
ou quase nada os distingue de autores de outros parâmetros culturais.
É o
caso de Amos Oz, o autor de Conhecer Uma Mulher. Pertencente a
uma geração que esteve implicada na Guerra da Independência, contribuiu, em
particular com Abraham B. Yehoshua e David Shahar, para a crescente audiência
internacional da literatura israelita, sendo hoje um escritor excepcionalmente
premiado (ainda há dias obteve mais um prémio na Feira de Frankfurt). A sua
obra, iniciada na década de sessenta, procurou problematizar a afirmação
individual numa sociedade consolidada em redor de valores éticos e religiosos e
que utiliza esses valores, como um verniz hipócrita, para procurar dar legitimidade
a atitudes inumanas e brutais, como as que tem assumido com a comunidade
palestiniana.
No
entanto, os seus mais recentes romances entraram, sem se tornarem autobiográficos,
num registo mais intimista e pessoal. Em Conhecer Uma Mulher, por exemplo, só
vagamente se alude as circunstâncias políticas que hoje se vive em Israel, com
referências aqui e além a uma “internacional terrorista” aliada aos
palestinianos, à guerra do Líbano, à tensão social nas regiões ocupadas, ao
receio de incorporação no exército.
A
personagem principal deste romance é um agente secreto israelita, de
meia-idade, que, no regresso de uma das constantes viagens que efectua para
todos os cantos do mundo, é informado que a sua mulher morreu electrocutada, em
circunstâncias obscuras, em sua casa.
Não
julgue, contudo, o leitor, com esta síntese da trama, que está em presença de
uma obra no estilo das de John Le Carré. O que interessa a Amos Oz é construir
uma personagem que, por razões profissionais, sempre se habituou a tentar desvendar
aquilo que está para lá da aparente opacidade da realidade e que, perante a
morte da mulher, sente necessidade de utilizar essa experiência para descobrir
as formas como se organiza e se equilibra, de um modo instável, a existência.
Tanto mais que, percebe agora, foi um logro, em nome do interesse colectivo, o
seu esforço de análise de uma realidade que não passava de uma imagem política
forjada e que, ao invés, tenham ficado (e continuem a ficar) como verdadeiras
incógnitas os membros da sua família: os prazeres partilhados, os projectos individuais,
os isolamentos cíclicos, os terrores, até a própria doença foram para ele um
mero fogo existencial que se consumiu por si.
Por
isso, reforma-se, aluga uma nova casa, onde vai viver com a filha, a mãe e a
sogra, e prepara-se, portanto, como forma de “luto”, para entender o irreparável.
Mas o seu esforço de decifrar na memória sentidos impossíveis não lhe abre a
concha da realidade: disponível, abandona-se a trabalhos caseiros desnecessários,
a aceitar com resignação os apelos e os desejos dos que dele se aproximam. Transforma-se
em espectador distanciado do circuito de “exaltações e humildades” com que o
tempo inebria as pessoas, à espera que algum dia as peças da existência se
comecem a encaixar, dando-lhe o almejado e serenante “conhecimento”.
Até
que um acidente - o assassínio de um colega numa missão que ele deixou
incompleta e que se recusara a concluir - fá-lo descobrir o que já sabia: não há
conhecimento possível. E essa violenta descoberta provoca-lhe uma intensa
piedade por si e pelos outros. Mas percebe também que este sentimento, incómodo
e perigoso, lhe trouxe a chave da conciliação com a condição humana, levando-o
mesmo a acreditar que, deste modo, algum dia, possa vir um “fulgor das profundezas da escuridão”.
Conhecer
Uma Mulher reflecte, assim, a situação de um homem incapaz
de continuar a defender-se com argumentações de uma soberania omnisciente. Alguém
que aceita viver com a imensa opacidade que cobre o mundo, sabendo que a
precaridade e o nevoeiro das incertezas são o quinhão universal. Talvez, por
isso, o leitor sinta o desejo de pressentir neste romance um bom prenúncio:
algo pode estar a mudar, em termos colectivos, em Israel.
Publicado no Público em 1992.
Título: Conhecer Uma Mulher
Autor: Amos Oz
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
377 págs., esg.
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