segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

LEONARDO SCIASCIA

 
 
 
SIMULAÇÃO E MEMÓRIA
 
No Herzog de Saul Bellow, há uma determinada personagem que afirma, a certo passo, que todos os indivíduos têm um conjunto de histórias pessoais que é o seu repertório de poemas. Sempre considerei esta frase como bem definidora da memória como um património pessoal que cria um espaço de identificação, de individualização e, por conseguinte, de fascinação para os outros. Mas será de facto pessoal (e real) a figura que a memória em nós desenha?
 
É esta a questão, notoriamente pirandelliana, que Leonardo Sciascia coloca nesta novela que, com ironia, intitula O Teatro da Memória. Através dum caso judicial, que apaixonou a opinião pública italiana no final da década de vinte, ocasionado pela obstinação de uma viúva, pertencente a uma prestigiada família, em reconhecer, num “desmemoriado” preso por pequenos furtos, o seu marido desaparecido na primeira guerra mundial - mesmo quando a polícia lhe prova que é um vagabundo cadastrado por burla e furto -, o autor encena o constante conflito entre desejo e realidade.
 
Efectivamente, numa realidade estiolada por um esmagador arcaísmo social, o desejo da viúva Giulia Canella, assim como a necessidade de se libertar do destino miserável do “desmemoriado”, leva à criação de um quadro frágil de referências cúmplices, “um ponto de fuga” que lhe permite “interiorizar“ uma realidade mais “verdadeira” do que objectiva. Todo o desenrolar do processo judicial, com o aparecimento de argumentos e contra-argumentos, todos eles pretendendo ser científicos e rigorosos, vai possibilitar a Leonardo Sciascia demonstrar a existência de um imaginário simulante, de um “teatro da memória”, que não só golpeia a memória real, mas, antes do mais, porque desejado, é seu fundador. Entre simulação e memória existe, portanto, uma capilaridade que torna inútil qualquer especulação sobre a verdade subjectiva que a memória deverá representar para cada um de nós.
 
Estas reflexões sobre as relações entre simulação e memória, que Leonardo Sciascia aqui apresenta, por meio da análise irónica dum “fait-divers”, tornam-se estimulantes para a compreensão da génese do mundo ficcional, e, em particular, da sua própria obra, visto que esta parte sempre da hipótese de existir “realmente” uma história e uma memória de um povo (o italiano, o siciliano), para, através de uma criação romanesca empenhada em termos éticos, perceber as transformações culturais que se vão processando na sociedade italiana. Mesmo a própria história literária é entendida por Sciascia como uma longa memória que vai fermentando a constante reprodução de novas obras que dissimulam, e transformam, o sentido das anteriores (daí existir, por exemplo, uma verdadeira “retórica da citação” em toda a sua produção narrativa).
 
Mas esta reflexão de O Teatro da Memória permite também que Sciascia retire dela algumas perspectivas políticas. Por exemplo, o autor considera, de forma objectiva, que o consumo, estimulado pelo poder, provoca um processo de “desmemorização” ou de simulação da memória colectiva, através de mitos urbanos reproduzidos pelos meios de comunicação, e que o poder manobra essa ficção em proveito da sua consolidação. Por isso, a conclusão inevitável: toda a independência resistente começa na luta contra o esquecimento.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
  
Título: O Teatro da Memória
Autor: Leonardo Sciascia
Tradução: Maria Luísa Rodrigues de Freitas
Editor: Difel
Ano: 1986
103 págs., € 8,08
 



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