SIMULAÇÃO E MEMÓRIA
No Herzog
de Saul Bellow, há uma determinada personagem que afirma, a certo passo, que
todos os indivíduos têm um conjunto de histórias pessoais que é o seu repertório
de poemas. Sempre considerei esta frase como bem definidora da memória como um
património pessoal que cria um espaço de identificação, de individualização e,
por conseguinte, de fascinação para os outros. Mas será de facto pessoal (e
real) a figura que a memória em nós desenha?
É esta
a questão, notoriamente pirandelliana, que Leonardo Sciascia coloca nesta
novela que, com ironia, intitula O Teatro da Memória. Através dum
caso judicial, que apaixonou a opinião pública italiana no final da década de
vinte, ocasionado pela obstinação de uma viúva, pertencente a uma prestigiada
família, em reconhecer, num “desmemoriado” preso por pequenos furtos, o seu
marido desaparecido na primeira guerra mundial - mesmo quando a polícia lhe prova
que é um vagabundo cadastrado por burla e furto -, o autor encena o constante
conflito entre desejo e realidade.
Efectivamente,
numa realidade estiolada por um esmagador arcaísmo social, o desejo da viúva Giulia
Canella, assim como a necessidade de se libertar do destino miserável do
“desmemoriado”, leva à criação de um quadro frágil de referências cúmplices,
“um ponto de fuga” que lhe permite “interiorizar“ uma realidade mais “verdadeira”
do que objectiva. Todo o desenrolar do processo judicial, com o aparecimento de
argumentos e contra-argumentos, todos eles pretendendo ser científicos e
rigorosos, vai possibilitar a Leonardo Sciascia demonstrar a existência de um
imaginário simulante, de um “teatro da memória”, que não só golpeia a memória
real, mas, antes do mais, porque desejado, é seu fundador. Entre simulação e memória
existe, portanto, uma capilaridade que torna inútil qualquer especulação sobre
a verdade subjectiva que a memória deverá representar para cada um de nós.
Estas
reflexões sobre as relações entre simulação e memória, que Leonardo Sciascia
aqui apresenta, por meio da análise irónica dum “fait-divers”, tornam-se
estimulantes para a compreensão da génese do mundo ficcional, e, em particular,
da sua própria obra, visto que esta parte sempre da hipótese de existir “realmente”
uma história e uma memória de um povo (o italiano, o siciliano), para, através
de uma criação romanesca empenhada em termos éticos, perceber as transformações
culturais que se vão processando na sociedade italiana. Mesmo a própria história
literária é entendida por Sciascia como uma longa memória que vai fermentando a
constante reprodução de novas obras que dissimulam, e transformam, o sentido das
anteriores (daí existir, por exemplo, uma verdadeira “retórica da citação” em
toda a sua produção narrativa).
Mas
esta reflexão de O Teatro da Memória permite também que Sciascia retire dela algumas
perspectivas políticas. Por exemplo, o autor considera, de forma objectiva, que
o consumo, estimulado pelo poder, provoca um processo de “desmemorização” ou de
simulação da memória colectiva, através de mitos urbanos reproduzidos pelos meios
de comunicação, e que o poder manobra essa ficção em proveito da sua consolidação.
Por isso, a conclusão inevitável: toda a independência resistente começa na
luta contra o esquecimento.
Publicado
no Expresso em 1986.
Título:
O Teatro da Memória
Autor:
Leonardo Sciascia
Tradução:
Maria Luísa Rodrigues de Freitas
Editor:
Difel
Ano: 1986
103
págs., € 8,08
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