DESILUSÃO E TRAIÇÃO
Uma
das vertentes da insularidade literária britânica é a preponderância, num meio
dominantemente anglicano e presbiteriano, de autores católicos. É evidente que
o estatuto minoritário desta confissão provoca outra sensibilização aos seus atributos;
mas esta simples razão não pode compreender a orientação católica de obras tão
diversas como as de Graham Greene, Evelyn Waugh, Anthony Burgess ou Muriel
Spark, a autora de Miss Jean Brodie Na Flor da Idade. A arriscar uma hipótese, talvez
seja mais fácil encontrá-la na necessidade destes autores se distanciarem do
presente universo de compromisso burguês, e, por isso mesmo, de assumirem uma
moral mais identificada com uma Inglaterra aristocrática, pré-industrial.
De
origem escocesa, Muriel Spark pertence à mesma geração literária de Iris
Murdoch e desde a década de cinquenta que é aclamada pela sua versatilidade
estilística e pela aguda sensibilidade na definição de personagens e situações.
Formada em meio presbiteriano, converteu-se já tarde ao catolicismo, e esta
confissão religiosa tem-lhe servido, mais como instrumento da análise do que de
juízo, para a caracterização de grupos sociais fechados, sempre ligados a um
determinado espaço concreto (nos primeiros títulos, situados na Escócia e na
Inglaterra, depois, na Itália, para onde foi viver), com que ela vem compondo
uma vasta obra, onde se destacam os títulos Memento Mori, The
Abbess of Crewe e precisamente este Miss Jean Brodie Na Flor da Idade.
Miss
Jean Brodie é professora de ensino preparatório, na década de trinta, numa
escola feminina particular de Edimburgo. Convencida que se encontra na “flor da
idade” e que, portanto, está na melhor altura para realizar a sua vocação, resolve
dedicar-se a um grupo eleito de alunas, onde se refugia a aplicar os seus métodos
pedagógicos e a estabelecer as cumplicidades necessárias para fazer delas a “crème
de la crème”. No entanto, considerada demasiado aberta e irreverente, Miss Jean
Brodie sofre a perseguição da direcção da escola e teme, por isso, que os seus
métodos sejam denunciados pelas suas alunas e, desse modo, obrigada a abandonar
o ensino.
Com
este tema na aparência banal, Muriel Spark, assumindo a concepção tradicional
de que a arte narrativa é, no essencial, a arte de encenação dos conflitos éticos,
vai construindo este romance em torno do sentido de comportamentos caracterizáveis
pelos conceitos de dedicação e traição, revelando como estes não são oponentes,
mas, a seu modo, perigosamente confluentes.
Como é
natural, Miss Jean Brodie, ao dedicar-se às suas alunas, incute-lhes um
conjunto de valores que define uma ordem universal, capaz de as transformar em
seres de excepção. Essa ordem é entendida como perfeita e verdadeira, não só,
obviamente, por Miss Jean Brodie, mas também, em consequência da sua inexperiência
e do poder tutelar da professora, pelo grupo das suas alunas que se sente,
assim, personalizado e único. Este estatuto determina-lhes, porém, uma obrigação
moral: não trair a ordem universal que lhes é transmitida, não trair, portanto,
Miss Jean Brodie.
Mas o
crescimento e a agudização do espírito crítico das alunas vão permitir-lhes
perceber que a concepção idealisticamente romântica e heroica da vida, com que
Miss Jean Brodie as formou, não é assim tão perfeita, nem tão verdadeira: por
exemplo, a crueza dos factos demonstrou-lhes como era perecível o seu fascínio
pelo fascismo e o escamoteamento da materialidade sexual das relações afectivas
revelou-lhes o logro e o desajuste daquela concepção. Foi a gradual certeza de que
a dedicação de Miss Jean Brodie, ao determinar-lhes a sua formação caracterial
e, por conseguinte, o seu posterior percurso, foi, a seu modo, uma forma terrível
de traição, que levou a que o grupo das alunas deixasse de sentir obrigações morais
para com ela: a traição da professora por uma delas, alguns anos mais tarde, é
o natural corolário de todo este processo.
Miss
Jean Brodie Na Flor da Idade permite, assim, a Muriel Spark
explicitar a sua convicção de que todo o comportamento intersubjectivo é, seja
qual for a sua intenção e intensidade, a transmissão de uma ilusão traiçoeira, merecedora
de toda a compaixão humana (e divina).
O
universo particular que este romance indicia, mas, em particular, a sua fluidez
estilística, ocultando um rigor onde nenhum elemento narrativo está em redundância,
faz de Miss Jean Brodie Na Flor da Idade uma das ficções mais cativantes
das ultimamente traduzidas: repare-se, por exemplo, no tratamento complexo da
temporalidade, onde as permanentes prolepses e analepses dão uma enorme dinâmica
narrativa, ou na subtil transformação das personagens, feita em redor de “clichés”
e “leitmotivs” (com que é habitual organizar-se o pensamento adolescente). Pena
é que a tradução, revelando, algumas vezes, soluções mais frágeis, não satisfaça
de um modo integral as gradações estilísticas da escritora.
Publicado no Expresso em 1988.
(Foto da Autora de Dmitri Kasterine).
(Foto da Autora de Dmitri Kasterine).
Título: Miss Jean Brodie Na Flor da Idade
Autor: Muriel Spark
Tradução: Wanda Ramos
Editor: Ed. Presença
Ano: 1988
150 págs., esg.