A FICÇÃO DA HISTÓRIA
As
condições difíceis do nosso mercado livreiro, e a inexistência de uma dinâmica cultural
que permita “abrir” esse mercado e formá-lo segundo critérios não apenas contingentes,
vão ocasionando diversas “estranhas coisas”: a publicação de obras contemporâneas
de significativa importância serem, muitas vezes, estritamente resultantes do
facto de “inspirarem” guiões de filmes, cuja passagem em Portugal foi um
sucesso comercial, é só um pequeno, mas expressivo, caso.
Está
nestas circunstâncias a edição pela Ed. Presença, do romance A
Amante do Tenente Francês de John Fowles, talvez a obra mais relevante
de um dos maiores romancistas ingleses contemporâneos.
É inegável,
no entanto, que a obra ficcionista de John Fowles (n. 1926), iniciada nos princípios
da década de sessenta e constituída, até ao momento, por cinco romances e um
livro de contos, teve uma espantosa repercussão cinematográfica: referimo-nos em
concreto ao interessantíssimo filme de William Wyler, estreado em Portugal com
o título O Obcecado, baseado rio seu primeiro romance, The
Collector; a um segundo, nunca estreado no nosso país, retirado de The
Magus; e, por fim, o filme homónimo da obra agora publicada, realizado
por Karel Reisz.
Uma
das características assinaláveis da obra de John Fowles, se exceptuarmos o seu
primeiro romance, é o constante confronto entre as personagens e a malha enredante
da própria ficção, entendendo esta como o conjunto das situações dramáticas
marcadas pelas figuras tutelares da História e da imaginação. Ou, de outro
modo, o que caracteriza esta obra é o conflito entre as personagens e o seu
autor, sendo este um agente determinante do drama narrativo que elas vivem.
Assim,
todas as personagens de John Fowles vivem o estigma da revolta (e da sua sufocação)
perante o destino que a ficção (lhes) produz - é o caso da personagem principal
de The
Magus - ou, por outro lado, conseguem atravessar, carregadas de um
destino enigmático, essa mesma ficção que, na perplexidade dessa passagem meteórica,
se resolve na interrogação por esse destino - é o caso de certas personagens
principais de alguns contos de The Ebony Tower.
É evidente
que este confronto está todo ele embebido por uma ténue ironia de quem sabe que
joga xadrez com o destino que inventa, e com isso compensa as próprias impossibilidades
físicas da vida, mas que assim contribui para uma particular reflexão sobre o
papel da ficção na compreensão da História.
Um dos
elementos fundamentais dessa reflexão esta directamente relacionado com uma das
exigências que a obra deste autor a si própria se impôs: a de, em pormenor,
definir os contornos da paisagem humana e física em que se inscrevem as suas
personagens principais. Neste sentido, a constante referência literária que é a
ficção vitoriana nesta obra, de Trollope, de Meredith e, em particular, desse
escritor essencial para a evolução da técnica do romance que é Thomas Hardy, tem
uma conotação estrutural: aceitando as premissas essenciais do “naturalismo”, a
obra de John Fowles questiona-as de forma ininterrupta, integrando na própria
estrutura romanesca esse questionamento.
Outro
dos elementos fundamentais dessa reflexão, mais evidente na última produção de
John Fowles, que inclui A Amante do Tenente Francês, Daniel
Martin e Mantissa, tem a ver com o próprio lugar do autor, com todo o conjunto
de referências sociais e filosóficas que o definem, na ficção que produz.
Vejamos,
agora, como esses elementos se revelam na obra agora editada, A
Amante do Tenente Francês.
O
enredo dramático é congénere aos romances da época histórica em que ele se
passa – o período vitoriano: a paixão funesta de um pequeno nobre, Charles
Smithson, culto e diletante, comprometido com a filha de um empresário da indústria
têxtil, por uma governanta, Sareh Woodruff, marginalizada pela comunidade rural
de Lyme Regis, um pequeno porto no sudoeste da Inglaterra, em consequência de
uma “aventura” amorosa com um náufrago oficial francês.
Este enredo,
na aparência banal, permite a John Fowles retratar numa grande focal o séc. XIX
inglês. O conjunto de sinais indicativos da época vitoriana, desde o mobiliário,
o vestuário ou a alimentação, às situações socio-económicas dos diversos extractos
sociais, desde a caracterização dialectal e linguística à determinação do
comportamento individual segundo os padrões éticos deste período, é de tal
ordem vasto, que pressupõe urna prolongada recolha de díspar informação e uma
metodologia de investigação comum a qualquer obra de levantamento científico
deste período.
Neste
conjunto informativo, são de realçar, até pelo seu efeito na própria narrativa,
as diversas citações com que o autor começa cada capítulo, que vão desde a poesia
popular ou de obscuros poetas da época até Tennyson, Arnold, Carroll e Hardy,
de anúncios e notícias do “The Times”, de relatórios sobre diversos contextos
sociais (o operariado, a prostituição, etc.) até a The Origin of the Species
de Darwin ou a obra de Marx, como se perseguisse os valores e os mitos que
estabelecem o limite de ruptura até onde o comportamento individual pode
avançar, sem cair na situação excepcional que motivaria, pelos seus efeitos, a
abertura ética.
Mas
toda esta panóplia impressionante de informação não tem apenas funções de
encenação encantatória ou de rigor de caracterização: o que se pretende perceber
é o que existe, ao nível do drama, de indeterminação na aparente determinação
histórica, realçando, assim, o papel “agente” do autor.
Porque
é bem claro, em A Amante do Tenente Francês, que John Fowles tem consciência
que a História é uma teia que determina mais o autor do que a personagem: o autor
não deseja esquivar-se à distancia que o seu estatuto de entidade criadora tem
sobre as personagens romanescas e o tempo que elas dramatizam (é evidente que
esta distância está sempre implícita na convenção romanesca; - mas o que John
Fowles procura neste romance, é explicitá-la através da presença interveniente
e “construtiva” do autor).
Assim,
não só o autor comenta directamente o próprio desenrolar do drama (à boa
maneira da ficção romântica), como, de um modo constante, analisa a própria distância
que vai do seu tempo ao das personagens, reflectindo sobre a diferença ética
nos comportamentos: em A Amante do Tenente Francês, o que
motiva o autor a compreensão da genealogia do ”seu” comportamento, é revelar o
que perdurou da “tessitura” emocional do período vitoriano até à sua época. Neste
sentido, esta obra, mais do que um “romance histórico”, afirma-se como a ficção
de um portentoso talento de “historiador”.
Porque,
nitidamente, John Fowles não crê que uma obra de ficção seja resultante dum
complexo de variáveis científicas. Daí que o comportamento das personagens não
corresponda de um modo unívoco aos elementos informativos (o romance possui três
finais, todos eles possíveis no conjunto desses elementos informativos), como,
por outro lado, as personagens “fogem” algumas vezes, para irónica perplexidade
do autor, ao que é previsível no quadro informativo que o autor possui. A
Amante do Tenente Francês questiona deste modo, por diversas vias, o
determinismo naturalista que está subjacente ao romance clássico e, numa certa
perspectiva, a este mesmo romance.
Um
outro aspecto fundamental para a compreensão da última produção romanesca deste
autor, incluindo A Amante do Tenente Francês, está relacionado com o estatuto da
figura feminina: ela é o Outro absoluto, com todo o grau de indeterminação
inerente.
Pelos
processos de ruptura que encarna e provoca, a figura feminina torna-se um
imponderável, a obscura representação do devir histórico. Sarah Woodruff, a personagem
que motiva o título deste romance, caracteriza-se por um comportamento
emocional que, de forma irremediável, a “afasta” do meio social de Lyme Regis,
produzindo uma dupla reacção, com origens culturalmente distintas: ou o ostracismo
e a reprovação, ou a ânsia de compreender, de absorver a própria estranheza.
Mas a constante dependência masculina, em relação ao seu próprio lastro
cultural, bloqueia-lhe por completo as possibilidades de compreender a tendência
para a fuga da acção feminina, caindo em míticos e cegos tacteamentos.
Numa
síntese simplista, mas talvez esclarecedora, pode dizer-se que a figura feminina
é a incorporação da própria fluidez do tempo, a ruptura que se confronta com a
ordem que os tempos constroem, isto é, com a História de quem o estatuto
masculino é o principal guardião.
E é uma
paráfrase à obra de Darwin, que se entende uma outra convicção profunda de A
Amante do Tenente Francês: esta incorporação feminina torna-a
eminentemente “progressiva” e a que mais condições inerentes tem para
adaptar-se às dificuldades do meio para subsistir. O malogro total, que é o
percurso de Charles Smithson, é resultante da própria incapacidade, pelo seu
estatuto social e pela sua condição masculina, em ler a fluidez do tempo, os
dinamismos sociais que são o meio “real” do próprio homem.
A
imponderabilidade feminina torna-se a enigmática linha do horizonte da História,
o lugar depositário da imaginação, da capacidade de ficcionar. Todo o anseio do
criador, do ficcionista (e com ele, de nós, seu leitor) é de alcançar essa
linha de constante fuga da ficção, arrastando a História. Talvez todo o fascínio
de contar (e do ouvir contar) esteja nesta ilusão de dominar o futuro, esse feminino
absoluto, que ele transmite - mesmo sabendo que ele é (quantas vezes!) mais
perecível e pobre que a (nossa) própria História.
Publicado no JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias em
1983.
Título: A Amante do Tenente Francês
Autor: John Fowles
Tradutor: Paula Vitória Silva
Editor: Ed. Presença
Ano: 1983
357 págs., esg.
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