segunda-feira, 24 de abril de 2017

MURIEL SPARK

 
 

DESILUSÃO E TRAIÇÃO

 

Uma das vertentes da insularidade literária britânica é a preponderância, num meio dominantemente anglicano e presbiteriano, de autores católicos. É evidente que o estatuto minoritário desta confissão provoca outra sensibilização aos seus atributos; mas esta simples razão não pode compreender a orientação católica de obras tão diversas como as de Graham Greene, Evelyn Waugh, Anthony Burgess ou Muriel Spark, a autora de Miss Jean Brodie Na Flor da Idade. A arriscar uma hipótese, talvez seja mais fácil encontrá-la na necessidade destes autores se distanciarem do presente universo de compromisso burguês, e, por isso mesmo, de assumirem uma moral mais identificada com uma Inglaterra aristocrática, pré-industrial.

 
De origem escocesa, Muriel Spark pertence à mesma geração literária de Iris Murdoch e desde a década de cinquenta que é aclamada pela sua versatilidade estilística e pela aguda sensibilidade na definição de personagens e situações. Formada em meio presbiteriano, converteu-se já tarde ao catolicismo, e esta confissão religiosa tem-lhe servido, mais como instrumento da análise do que de juízo, para a caracterização de grupos sociais fechados, sempre ligados a um determinado espaço concreto (nos primeiros títulos, situados na Escócia e na Inglaterra, depois, na Itália, para onde foi viver), com que ela vem compondo uma vasta obra, onde se destacam os títulos Memento Mori, The Abbess of Crewe e precisamente este Miss Jean Brodie Na Flor da Idade.

 
Miss Jean Brodie é professora de ensino preparatório, na década de trinta, numa escola feminina particular de Edimburgo. Convencida que se encontra na “flor da idade” e que, portanto, está na melhor altura para realizar a sua vocação, resolve dedicar-se a um grupo eleito de alunas, onde se refugia a aplicar os seus métodos pedagógicos e a estabelecer as cumplicidades necessárias para fazer delas a “crème de la crème”. No entanto, considerada demasiado aberta e irreverente, Miss Jean Brodie sofre a perseguição da direcção da escola e teme, por isso, que os seus métodos sejam denunciados pelas suas alunas e, desse modo, obrigada a abandonar o ensino.

 
Com este tema na aparência banal, Muriel Spark, assumindo a concepção tradicional de que a arte narrativa é, no essencial, a arte de encenação dos conflitos éticos, vai construindo este romance em torno do sentido de comportamentos caracterizáveis pelos conceitos de dedicação e traição, revelando como estes não são oponentes, mas, a seu modo, perigosamente confluentes.

 
Como é natural, Miss Jean Brodie, ao dedicar-se às suas alunas, incute-lhes um conjunto de valores que define uma ordem universal, capaz de as transformar em seres de excepção. Essa ordem é entendida como perfeita e verdadeira, não só, obviamente, por Miss Jean Brodie, mas também, em consequência da sua inexperiência e do poder tutelar da professora, pelo grupo das suas alunas que se sente, assim, personalizado e único. Este estatuto determina-lhes, porém, uma obrigação moral: não trair a ordem universal que lhes é transmitida, não trair, portanto, Miss Jean Brodie.

 
Mas o crescimento e a agudização do espírito crítico das alunas vão permitir-lhes perceber que a concepção idealisticamente romântica e heroica da vida, com que Miss Jean Brodie as formou, não é assim tão perfeita, nem tão verdadeira: por exemplo, a crueza dos factos demonstrou-lhes como era perecível o seu fascínio pelo fascismo e o escamoteamento da materialidade sexual das relações afectivas revelou-lhes o logro e o desajuste daquela concepção. Foi a gradual certeza de que a dedicação de Miss Jean Brodie, ao determinar-lhes a sua formação caracterial e, por conseguinte, o seu posterior percurso, foi, a seu modo, uma forma terrível de traição, que levou a que o grupo das alunas deixasse de sentir obrigações morais para com ela: a traição da professora por uma delas, alguns anos mais tarde, é o natural corolário de todo este processo.

 
Miss Jean Brodie Na Flor da Idade permite, assim, a Muriel Spark explicitar a sua convicção de que todo o comportamento intersubjectivo é, seja qual for a sua intenção e intensidade, a transmissão de uma ilusão traiçoeira, merecedora de toda a compaixão humana (e divina).

 
O universo particular que este romance indicia, mas, em particular, a sua fluidez estilística, ocultando um rigor onde nenhum elemento narrativo está em redundância, faz de Miss Jean Brodie Na Flor da Idade uma das ficções mais cativantes das ultimamente traduzidas: repare-se, por exemplo, no tratamento complexo da temporalidade, onde as permanentes prolepses e analepses dão uma enorme dinâmica narrativa, ou na subtil transformação das personagens, feita em redor de “clichés” e “leitmotivs” (com que é habitual organizar-se o pensamento adolescente). Pena é que a tradução, revelando, algumas vezes, soluções mais frágeis, não satisfaça de um modo integral as gradações estilísticas da escritora.

  

Publicado no Expresso em 1988.

(Foto da Autora de Dmitri Kasterine). 

 

Título: Miss Jean Brodie Na Flor da Idade
Autor: Muriel Spark
Tradução: Wanda Ramos
Editor: Ed. Presença
Ano: 1988
150 págs., esg.
 
 




Sem comentários: