A IMPRECAÇÃO CONTRA O TEMPO
Uma das
questões determinantes na obra de Samuel Beckett é a sua radicalidade ética e
estética. De facto, os textos deste autor partem do princípio de que quase nada
existe antes deles. Talvez se vislumbrem ténues vestígios de um corpo,
penumbras de um lugar, restos de uma entidade. Mas também muito pouco existe
depois deles. O receptor não passa de uma testemunha anónima de uma fala que
existe por si e que não procura nada nem ninguém. Na linha do tempo, esta fala mantém-se
na expectativa. De uma difusa compreensão que há-de vir, de um lampejo que, em definitivo,
cegue.
A esta
radicalidade estética ajusta-se um posicionamento ético que entende a
literatura como uma espécie de emanação natural do absurdo metafísico que fundamenta
a existência humana: a consciência da morte. Mas esta não é só entendida na sua
dimensão física, mas reflexo maior da absoluta incomunicabilidade das consciências.
A vida é urna simples viagem vertiginosa para a desagregação, uma paciente decomposição
das ilusões até se atingir toda a opacidade do outro e se ficar com a certeza
residual de um corpo, de um lugar. E a literatura é a única arma, romba e frágil,
que se pode erguer contra o tempo. Esta sua exclusiva tarefa, obriga-a a descarnar-se
de atributos, a revelar-se no osso da palavra.
Não há,
no entanto, dúvidas em Samuel Beckett sobre qual o resultado desse duelo entre
a literatura e o tempo. Mas esse resultado em nada alterará o devir da
literatura: a fala, e isto basta para infinitamente a justificar, é a expressão
mínima de um organismo no confronto inglório contra o tempo, a imprecação possível
perante a brutal injustiça da criação divina.
Sob o
aparente exercício da lógica de Pioravante marche, traduzido de uma
forma provocatória e polémica (mas correcta) por Miguel Esteves Cardoso, sob
este discurso que, em coerência, se contradiz, que se limita à síncope curta da
palavra, vindo de um indefinível narrador, perseguindo informes personagens que
corporizam interrogações essenciais, passa uma torrente subterrânea que, de um
modo desesperado, “não sai”, mas que a todos nós referencia.
Publicado na Ler em 1988.
(Foto do Autor de Jane Bown).
(Foto do Autor de Jane Bown).
Título: Pioravante Marche
Autor: Samuel Beckett
Tradutor: Miguel Esteves Cardoso
Editor: Gradiva
Ano: 1988
87 págs., esg.
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