terça-feira, 16 de maio de 2017

LAWRENCE DURRELL 2

 
 
 

UM OLHAR TAO
  
Se tentarmos desvendar caminhos na floresta narrativa e poética de Lawrence Durrell, logo perceberemos que um dos mais importantes é a senda em que busca estabelecer com os lugares uma consonância onde a individualidade respira ao ritmo da “harmonia mundi”, compenetrando-se dos diversos “deus loci” (título de uma das suas colectâneas de poemas) e formando com eles um pleno e primordial ser. Esta “poiesis”, que, no essencial, pretende descobrir a espiritualidade da matéria, explica, em grande parte, o percurso existencial e artístico de Lawrence Durreil: peregrino do Sol, este irlandês nascido na Índia vai procurar por todo o Mediterrâneo e por todas as doutrinas não-racionalistas (desde os pré-socráticos à gnose, passando pelas filosofias orientais) a consubstanciação da sua maneira de pensar e sentir.
 
É certo que Lawrence Durrell sempre reconheceu a existência do Príncipe das Trevas na matéria e nos interesses materiais (é essa uma das obsessões do Quinteto de Avinhão). Mas a redenção pelo sacrifício e pela morte, enraizada na civilização ocidental pelo cristianismo, como via para extirpar a sua presença, sempre lhe pareceu abjecta e aquela que, pelo contrário, mais a favorece. Por isso, Lawrence Durrell tem defendido a necessidade de ultrapassar uma ética categórica e de reconhecer, como os gnósticos, a existência de contrários, sendo esta não só a melhor forma de reduzir a acção de Lucifer, como aquela que permite ao homem atingir a plenitude no seio da Natureza.
 
Procurar, através da contenção, a sintonia da energia individual e cósmica, como forma de estabelecer uma comunicabilidade empática e não apenas verbal e racional, desejar a plenitude (e porque não a imortalidade?) nesta vida, pela integração de contrários e pelo não-agir, são princípios fundamentais do taoismo e Um Sorriso nos Olhos da Alma, o breve conjunto de recordações e reflexões agora traduzido e editado, confirma-nos que esta doutrina nunca andou longe do pensamento de Lawrence Durrell.
 
Os dois encontros (um com o taoista Jolan Chang, outro com uma mulher enigmática, aparentemente ocasional, obcecada pela paixão de Nietzsche por Lou Andreas-Salomé, que percorre com o autor o lago de Orta, onde o filósofo alemão se teria declarado) e a deslocação a um templo tibetano na região de Autun, em redor dos quais se tece o fio condutor de Um Sorriso nos Olhos da Alma, são narrados como situações paradigmáticas das potencialidades comunicacionais de Tao. E é aqui que, em particular, intervém a já habitual magia verbal deste autor, ao transformar as descrições de ambientes e paisagens em verdadeiros cenários interiores, em conseguir arrastar o leitor na expressão exaltada dos afectos, do amor físico, da mulher.
 
Mas se as páginas mais interessantes e polémicas de Um Sorriso nos Olhos da Alma são as relacionadas com o amor físico e a mulher (a necessidade da “piedade” no amor, a importância de um orgasmo que não seja uma mera manifestação ejaculatória, a concepção da mulher como “guia sobrenatural do homem”, a afirmação da heterossexualidade como pedra de base do universo), são também elas que revelam a fragilidade do posicionamento de Lawrence Durrell e a sua incompreensão em relação a alguns dos actuais valores sociais. A sua pretensão em transformar-se num “guru”, que, vindo de outros mundos e outros tempos, procura apontar uma metafisica alternativa, fá-lo afundar-se numa outra ética categórica, diferente, é certo, da cristã, mas que à mesma lança para os braços do Príncipe das Trevas uma boa parte da realidade que ele não quer, ou não consegue, entender como “contrária” ao seu modo de pensar.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Um Sorriso nos Olhos da Alma
Autor: Lawrence Durrell
Tradutor: Helena Cardoso
Edição: Quetzal Editores
Ano: 1990
105 págs., esg.
 
 


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