A FERIDA ORIGINÁRIA E A COMPENSAÇÃO
IDEOLÓGICA
O terrorismo,
pela imensa angústia quotidiana que provoca, tem motivado, nos últimos anos,
uma intensa actividade editorial, onde se procura caracterizar o fenómeno.
Semelhante circunstância advém, antes do mais, da certeza de que ele é
resultante de dois factores culpabilizantes do mundo contemporâneo: a
incapacidade da actual sociedade em integrar certos grupos, para que tenham
outros meios de afirmação social e política que não seja a violência, e a consciência
de que os argumentos, que legitimam essa violência terrorista, entroncam em algo
essencial do processo filosófico e ideológico ocidental.
Doris
Lessing, dentro da vertente realista da sua prolífera obra, resolveu também agora,
em A
Boa Terrorista, debruçar-se sobre este assunto. Mas, tal como nos
restantes romances, onde pretende, no essencial, fazer o levantamento das motivações
do mal-estar contemporâneo, o que lhe interessa é explicitar quais os
mecanismos caracteriais que estão por detrás do terrorismo, em particular, aqueles
que facilitam uma tão convicta adesão a princípios ideológicos que tornam, por
consequência, natural o uso da violência.
Através
das peripécias de um grupo de “squatters” de extrema-esquerda (que, enquanto
ocupa uma casa devoluta e pronta a demolir, tenta entrar em contacto com o
I.R.A., com o intuito de tornar-se um dos seus braços armados na Grã-Bretanha),
vai percebendo-se que existe um denominador comum na maioria deste conjunto de
personagens: eles são estigmatizados por uma “ferida” (que pode ser a negritude,
a homossexualidade assumida como vida oculta, a histeria, etc.) que lhes
impossibilita a integração social e os impele à desagregação psicológica e física.
A ideologia torna-se, aparentemente, a via para suster essa desagregação, visto
que lhes dá uma ilusão de omnisciência que justifica a sua marginalidade:
sentem-se no palco da História e a euforia, daí resultante, não só lhes provoca
uma completa inconsciência sobre os efeitos da sua acção, como também origina, no
contraste com a realidade medíocre em que vivem, alguns episódios de intensa
comicidade e que pontuam este trágico romance (recordo, por exemplo, a forma
como são manipulados, pelos “profissionais” da violência, os míseros resultados
mobilizadores das suas manifestações, a dimensão grupuscular dos seus Congressos,
etc.). Mas, de facto, a ideologia é, através de um circuito perverso, o
escoador fácil para as suas pulsões de auto-destruição, visto que a perfeição
revolucionária é encarada como o estádio do martírio extremo. Neste sentido,
Faye, a militante que se deixa imolar na própria bomba que lança, é a mais
consequente, porque, com o seu acto, conseguiu, com uma convicção brutal, dar
cabo da sua insuportável existência.
No
contexto deste grupo, Alice, a personagem principal de A Boa Terrorista, distingue-se,
visto que a sua “ferida” é resultante da sua sexualidade branca que, não só a
leva a repudiar o sexo por ser uma “via de perdição”, como também a afasta do percurso
(normalizado) dos seus pais. A sua necessidade de uma afectividade assexuada
leva-a, por isso, a aproximar-se deste grupo de “squatters” e a empenhar-se (de
forma quase solitária) na reconstrução de uma casa - espaço onde pretende
constituir uma teia de relações de “camaradagem” que funcione como casulo em
relação a um universo que lhe exige uma presença como figura sexuada. Talvez
porque a sua “ferida” vai cicatrizando com a reconstrução da casa, Alice é a única
que consegue perceber a dimensão absurda da violência que os outros membros do
grupo necessitam como exigência visceral.
No
fundo, é provável que este romance de Doris Lessing nada traga de inovador
sobre o tema do terrorismo. Mas é inegável que a sua capacidade expressiva na pormenorização
das situações (talvez, aqui e além, essa pormenorização se revele pouco
funcional, tornando a leitura de A Boa Terrorista por vezes monótona)
e, principalmente, a eficácia da sua estrutura dramática lhe dão uma dimensão
invulgar e comprovam que Doris Lessing é também, entre outros aspectos, uma das
mais importantes escritoras realistas da literatura contemporânea.
Por
fim, gostaria de referir que, mais uma vez, as Publicações Europa-América
revelam uma concepção ultrapassada da actividade editorial e um notório
desrespeito pelas exigências do actual público leitor. Como é possível
continuar a fazer edições onde a capa nada tem a ver com o conteúdo (alguém é capaz
de explicar por que aparece um robot do Blade Runner na capa deste romance?),
sem qualquer revisão, tipográfica ou outra, e com traduções feitas a granel?
Publicado no Expresso em 1988.
(Foto da Autora de Louis Monier).
(Foto da Autora de Louis Monier).
Título: A Boa Terrorista
Autor: Doris Lessing
Tradutor: Bernardette Pinto Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1988
299 págs., € 17,67
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